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200713 Arriba-Hazaña-0Estado espanhol - PGL - [José Paz Rodrigues] Desde que iniciei no PGL a minha série As Aulas no Cinema, arredor da data de 18 de julho costumo dedicar um dos meus capítulos a lembrar o terrível e triste fato do golpe de estado franquista, que tantos problemas criou e que durante mais de 40 anos manteve uma infame ditadura no país, sem liberdades para os cidadãos.


Ainda hoje, depois de 78 anos, é um tema central, mantendo vivos problemas graves gerados naquela altura, quando Franco, com os seus militares colaboradores, se alçou em armas contra o legítimo governo da II República. E estamos também a pagar uma Transição mal feita, em que os culpáveis daquelas atrocidades —e de muitas matanças— não receberam o castigo que mereciam, ficando totalmente livres, embora cometeram tantos crimes e tanta repressão sobre a população. Ainda, forçou-nos a admitir —à força— também o modelo político da monarquia, sem poder o povo escolher nem decidir, tema que recentemente pudemos comprovar, pois “daquelas águas vêm estas lamas”.

Todos os especialistas da educação concordamos que o período republicano, no que se refere à educação, o ensino, a escola e a cultura, foi o mais frutífero de todos ao largo da história pedagógica do país, sem nenhuma dúvida, e ainda hoje não superado. O mestre e os docentes tinham uma grande importância e a sua formação inicial e permanente ou em exercício era um modelo. Isto provocou uma identificação total na maioria dos docentes com a República, o que muitos pagaram mesmo com as suas vidas ao chegar o fascismo. Sistema este que, à força e sem discussão, durante largas décadas, que o poeta Ferreiro, acertadamente, denominou como “longa noite de pedra”, manteve uma escola acrítica, autoritária, de ideologia nazi (especialmente até à Lei Geral de 1970), discriminatória para a mulher, impondo um currículo de ideologia reacionária, manipulando a nossa história de forma vergonhosa, só admitindo, e impondo o seu ensino, com catecismo e tudo, a doutrina religiosa do nacional-catolicismo (que nalguns setores chega aos nossos dias), contrária mesmo à autenticidade do evangelho, fomentando o autoritarismo dos docentes e o uso de castigos corporais, da vara e da repressão. Impondo à força o ensino único do castelhano e só o seu uso para a comunicação nas aulas e nos textos e outros recursos didáticos. Proibindo terminantemente os idiomas galego, catalão e basco, que só eram utilizados pelas crianças —por serem as suas línguas maternas—, nos espaços e tempos livres.

Também separava nas salas de aulas e escolas as meninas dos rapazes, salvo nas escolas mistas de aldeias com poucas crianças, mas obrigando a que fossem estas só eram regidas por mestras e não por homens, o que provocava que as mestras tivessem que cobrir os lugares de docentes nas localidades mais isoladas, marginadas e longínquas. O sistema educativo franquista caracterizou-se pelo seu regime disciplinar, apoiado na educação hierarquizada em espaços regulados e permanentemente vigiados como as escolas, os institutos e as universidades, onde os estudantes não tinham possibilidade alguma de ser sujeitos ativos no seu processo de aprendizagem, e onde o objetivo último de tal processo era a disciplina dos sujeitos de cara ao mercado de trabalho, e a reprodução dos roles de comportamento e dos esquemas ideológicos que legitimavam aquela ordem social. Relacionado com isto, podemos falar também da violência que implicavam as tradicionais aulas magistrais, em que se submetia os estudantes desde a infância a uma estrita submissão à autoridade através do silêncio e a obediência. Pode-se falar, assim mesmo, dos abusos que cometiam alguns professores contra os alunos, e de agressões verbais de todo o tipo, embora também houvesse bons mestres que desenvolviam, de forma calada, um bom labor educativo, dentro das margens que o sistema lhe permitia.

Pois, deve assinalar-se que nem todo era negativo nestas escolas, dado que nelas se fomentavam a leitura, a escrita, as redações —com os famosos “Cadernos de Rotação”— e o cálculo. Os recreios eram espaços básicos para a socialização das crianças, participando em jogos e brincadeiras, muitas vezes a base de jogos populares e tradicionais, momentos em que, espontaneamente, os rapazes se exprimiam na sua língua materna, que era a sua vital e de uso normal na sua casa e no seu povo. Infelizmente, pois não interessava ao regime, a formação inicial e permanente dos docentes era muito deficiente e incompleta, sendo mais ideológica —dentro dos cánones da ideologia política e religiosa reacionárias (fascismo e nacional-catolicismo)—. Com o ministro Villar Palasí, em 1970 promulga-se a Lei Geral da Educação, que sem dúvida foi um grande avanço: promoveu novos modelos pedagógicos, a educação personalizada e o ensino globalizado, deitando por terra aqueles mais reacionários dos anos do pós-guerra e décadas seguintes. Mas não chegou ao que tinha que ser de um sistema educativo laico —que ainda nem hoje atingimos—, apesar de que levamos já mais de trinta anos sem naquela ditadura plena.

Quem escreve este depoimento foi formado dentro do sistema educativo franquista, do ensino primário até à universidade, e, portanto, viveu, experimentou e sofreu em direto tal sistema, e também viveu a Transição e os anos seguintes à mesma. Posto a destacar como algo positivo daquele sistema, tenho que citar os institutos laborais, com todas as suas modalidades, as universidades laborais, a política de bolsas e de bolsas-salário, e o que de renovador trouxe a Lei de Villar Palasí. Depois, na ‘democracia’, a renovação pedagógica, levada para a frente por numerosos movimentos de renovação, que na Galiza terminou em 2008 por culpa de uma nefasta diretora-geral de Formação do Professorado, chamada M.ª José Pérez Marinho, que durante o seu triste mandato atuou contra o que defendiam na teoria e na prática a pedagoga Marta Mata i Garriga e, o para mim o melhor ministro de educação que tivemos no país, José M.ª Maravall.

Para apoiar e comentar o que antes foi escrito, escolhi um filme muito adequado, realizado em 1978, no tempo da transição, por José M.ª Gutiérrez, sob o título tão significativo ¡Arriba Hazaña!. Acho que é muito interessante que todos os jovens que desconhecem quase o período franquista e as suas consequências, e não viveram a etapa da Transição, por não terem ainda nascido, deveriam olhar este filme e refletir logo sobre as diferentes mensagens que o mesmo nos transmite.

FICHA TÉCNICA DO FILME :

Título original: ¡Arriba Hazaña!

Diretor: José M.ª Gutiérrez Santos (Espanha, 1978, 95 min., a cores).

Roteiro: J. M.ª Gutiérrez e José Samano, segundo o livro O inferno e a brisa, de José M.ª Vaz de Soto.

Fotografia: Magi Torruella. Música: Luis Eduardo Aute. Montagem: Rosa Salgado.

Produtora: Sabre Films S.A. Distribuidora: C.B. Films.

Atores: Fernando Fernán Gómez, Héctor Alterio, José Sacristán, Lola Herrera, Gabriel Llopart, José Cerro, Ramón Reparaz, Luis Ciges, Angel Álvarez, Manuel Guitián, Antonio Orengo, Andrés Isbert, José Luis Pérez, Enrique San Francisco, Iñaki Miramón, Agustín Navarro, Emilio García, José Franco, Hans Isbert, Baltasar Ortega, Carlos Coque e Esteban Benito.

Argumento: Durante a transição política no nosso país, a sociedade tinha que efetuar uma catarse sobre todo o que significava herança do passado franquista; o modelo educativo autoritário e adoutrinador de antano não podia ficar à margem dessa operação de limpeza de consciências. Assim, num colégio religioso, os alunos veem-se submetidos a uma disciplina férrea e a castigos injustificados por parte de alguns dos sacerdotes docentes. Guiados por alguns estudantes líderes inicia-se uma rebelião no colégio em que os alunos tomam a figura de Azaña (mas com agá: Hazaña), que fora presidente da República, como o símbolo da sua causa. Depois dalguns altercados, consegue-se a mudança de direção do colégio, que fica em mãos de um padre muito mais moderno. Vencedores, os alunos, os líderes, pretendem impor umas condições que não são compartidas pelo resto dos seus companheiros.

ESQUEMA DA HISTÓRIA E ALEGORIA POLÍTICA DO FILME:

Em síntese, poderia ter o seguinte desenvolvimento:

  1. Antigo regime: Clima de repressão. Ordem aparente. Ao final, conflito de autoridade. Ligeiros surtos de descontento (Primeiras sequências).
  2. Favorecida pelo conflito de autoridade, a reação da oposição cobra força: Progressivos desafios ao poder. Provocações (serpentim, morte do pássaro, hóstias simuladas).
  3. Cume da revolta: (petardos e encerro, queima de bandeiras). O poder reage energicamente com mão dura (o prefeito ex-legionário entra de novo em ação). A oposição, reprimido o intento, executa as suas próprias represálias (tortura do delator) e toma um tempo de espera. Ao menos conseguiu-se demonstrar o fracasso do velho sistema e dos seus métodos, que logo há provocar as mudanças.
  4. Mudança de regime: (chegada do novo diretor e convocatória de eleições). Tática: desmantelamento do bloco, concessões à oposição (amnistia parcial, podem olhar o telejornal, fumar), enfrentamento dos ‘puros’ e dos ‘ideólogos’”, com os ‘crassos’ interesses da maioria (fracasso da greve de fome). Mudaram os rostos, e em parte os métodos, mas não as intenções. Mais ou menos, tudo está como ao princípio. (Às ordens de outro prefeito, e sob a presidência do novo diretor, os alunos cantam o hino do colégio e a câmara afasta-se da fachada do velho edifício).

DA ESCOLA FRANQUISTA À ESCOLA DA TRANSIÇÃO:

Estamos perante um dos filmes mais característicos da transição no nosso país da ditadura à “democracia”, à que de forma metafórica se refere. O título faz referência à educação de toda uma geração do pós-guerra em que se juntam o berro do regime franquista “¡Arriba España!”, com a mitificação de quem fora presidente da República, Manuel Azaña (ao qual não se podia citar) e com “Hazañas Bélicas”, uma popular banda desenhada da época. Nesta fita, as personagens, tanto do irmão superior, psicólogo com inclinações homossexuais para as crianças ‘bonitas’ (representado por Héctor Alterio), e o irmão prefeito, ex-sargento da legião e adito à disciplina e à ordem no cultivo de todo o que se pretende que produza bons frutos (representado pelo ator Fernando Fernán Gómez), estão muito bem descritas, e sobretudo a pugna entre ambos à hora de levar para a frente o método mais adequado de solucionar as faltas graves dos escolares, que também estão bastante bem representados. Os religiosos educam os alunos para que no futuro sejam “homens cristãos para servir à humanidade e à pátria”. Por isto, é obrigatório assistir à missa, rezar durante as comidas, nas aulas, antes de deitar-se… Os curas maltratam os alunos castigando-os, fazendo-lhes sentir-se seres perversos e não respeitando a sua privacidade, ao levar a cabo registos amiúde. O colégio é uma espécie de instituição nacional-católica, constituída exclusivamente por professorado e alunado masculino, que se encontra num momento de transição política e social. Nesta instituição veem-se refletidas, em pequena escala, as consequências que implicam os movimentos políticos e sociais que se estavam a produzir no exterior, que se exprimem pelas rebeliões que fazem os alunos para apoiarem os seus companheiros.

O edifício do colégio em si era um dos mecanismos de socialização mais influentes, já que era onde se passava a maior parte do tempo. Por isso não existia quase nenhum contato com o exterior e parecia-se mais com uma prisão que a um estabelecimento de ensino. As relações entre professorado e alunado estavam muito definidas, em quanto que os mestres queriam impor a sua ideologia custasse o que custar, sem ter em conta as opiniões dos alunos. E quanto à relação entre os docentes era muito competitiva, já que não trabalhavam em equipa: cada um intentava fazer ver que a sua metodologia era a mais efetiva. Afinal, estamos perante a história de um colégio de religiosos em pleno franquismo, e embora não conheçamos a data, há referências claras à Guerra Civil, com grande número de alunos internos, regido com mão dura para manter uma ordem disciplinar, baseada no controlo absoluto do corpo e da mente dos educandos, e no qual uma série de ‘atentados’, cuja autoria não chega a estar clara, de estética intenção sacrílega e poderosamente simbólica, vão iniciar uma situação de reivindicações reformistas e, naquela altura, revolucionárias, com posturas encontradas.

O filme é destarte toda uma metáfora sobre o franquismo e a Transição, com uma forte carga crítica, obra digna de ser projetada e analisada na atualidade, até por jovens que deveriam conhecer estes momentos da nossa história. A leitura que se pode fazer deste filme, seguindo aquela famosa frase de Lampedusa, seria “é preciso que tudo mude para nada mudar”, pois na Transição tratou-se de fazer uma série de reformas para domesticar as pessoas, mas deixando os mesmos dirigentes à frente do país. A frase que dá título ao filme tem uma dupla carga irónica: por um lado, trata-se de uma distorção do fascista “¡Arriba España!”, e, por outro, a segurança, por parte dos jovens estudantes, de que o nome de Manuel Azaña é um anátema para os religiosos, provocando a sua adoção como grito de guerra das suas reivindicações, sem intenção ideológica. A ironia e a crítica são mais que evidentes, com um último plano em que a maioria dos alunos volta entoar o hino da escola, de letra grimosa, que os estudantes manipularam, de forma divertida e transgressora, mesmo com intenção subversiva, na sua etapa revolucionária. A câmara remata saindo da sala de aulas para ficar com os estudantes marginados, que queriam conseguir reformas radicais e autênticas. Destes dois alunos, um declara-se ao começo da história como anarquista, chegando a dizer que “é o único que se pode ser com dignidade neste antro”. Enquanto os seus companheiros divagam sobre as coisas que vão solicitar ao diretor, ele reivindica que têm que fazer sempre o que desejarem, que ninguém interfira nos seus desejos, e acha mesmo que devem participar na direção do colégio. A sua é uma crítica demolidora para toda autoridade coercitiva e a toda norma imposta desde fora. O plano final em que este estudante desprecia aqueles que passaram pelo redil, tanto o plano como a postura são compartidos com outro aluno honesto que sim decidira participar no sistema, mas termina por desenganar-se, outorgando dignidade e legitimidade moral à personagem do jovem estudante anarquista.

A intenção anarquista é abolir todo poder hierárquico, algo que não há ser desejável a priori para todo o mundo, tal como o filme reflete. Porém, a suposta harmonia que se nos amostra no colégio ao final do mesmo, com a chegada de umas reformas democráticas que fazem sentir aos jovens que cooperam na gestão, faz-se à custa da exclusão, e a expulsão física noutros casos, dos alunos mais reivindicativos. Quer dizer, trata-se de umas falazes ordem e harmonia, realizadas em base à uniformização e homologação. Temos que lembrar, por isto, que um dos motivos para que os dois alunos se automarginem na última sequência é pela sua exigência de que voltem seus companheiros expulsos.

A metáfora presente no filme é tremendamente efetiva, pois muitos discursos foram calados na recente história do país. Resulta de uma inegável atualidade mais de três décadas depois de aquele idealizado processo; muito necessária uma história em que a autoridade tradicional, que emprega métodos evidentes, é substituida por novas e subtis formas de dominação, interiorizadas pelo cidadão-aluno, até ao ponto de que o poder já não necessita amostrar-se de maneira evidente, pois o diretor do colégio agora vigia constantemente a seus alunos com uns prismáticos, símbolo evidente de um sistema repressivo panóptico. Trata-se de pôr ao dia o debate sobre quais são as melhores formas de governar, e qual autoridade resulta a mais adequada, em que o anarquismo tem muito a dizer, longe da caricatura em que constantemente o querem converter, legitimado em grande medida pela sociologia e psicologia. Da mesma maneira, no âmbito pedagógico, apresentam-se ainda muitos interrogantes, já que a negação aparente de uma educação tradicional baseada no controlo estrito não desterra a visão da escola como instrumento ‘normalizador’, e não como garante de indivíduos livres e de pluralidade social. Um dos males endémicos da nossa sociedade é a negação da história, nem sequer a sua limitação ou tergiversação, como acontece noutros lugares, pelo qual toda ferramenta cultural que servir para a oxigenar é bem-vinda. Este filme pode ajudar a conseguir este objetivo de compreender melhor o que foram a Transição e o modelo escolar que ela traz. Deveria ser projetado em todo o âmbito público, por ser enormemente ilustrativo do que se acabou de comentar.

TEMAS PARA REFLETIR E ELABORAR:

Depois de olhar este filme, utilizando a técnica de dinâmica de grupos do cinema fórum, debater sobre os aspetos fílmicos do mesmo, o roteiro e a linguagem cinematográfica utilizada pelo diretor, os planos, os movimentos de câmara, os travellings, os flashs-backs, o uso do tempo e do espaço, a montagem e a trilha sonora e outros recursos fílmicos que aparecem na fita. Também sobre a psicologia e as atitudes das diferentes personagens que aparecem no mesmo, tanto as principais como as secundárias.

Organizar técnicas de dinâmica de grupos, como discussões públicas ou dirigidas, entrevistas, diálogos simultâneos, etc., tomando como temas centrais o ensino da República, o do franquismo e o da Transição, estabelecendo comparações entre os mesmos, e fazendo entrevistas a docentes que os viveram. Também se poderia analisar a Lei Geral de Villar Palasí e as sucessivas leis das últimas décadas. E os modelos de formação inicial e permanente do professorado em cada momento histórico.


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