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História Sumária do Racismo no Brasil (Terceira Parte)

Mário Maestri

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História Sumária do Racismo no Brasil (Terceira Parte)

Mário Maestri - Publicado: Quinta, 16 Dezembro 2010 01:00

Mário Maestri

7. Feitorias, Castelos e Negociantes Africanos


No início da expansão marítima, nas costas atlânticas do Saara, os lusitanos desembarcavam seus cavalos e atacavam acampamentos de nômades berberes para obterem alguns cativos. Ao avançarem ao longo da costa, abandonaram esses métodos rústicos de aprisionamento. As populações saarianas afastavam-se do litoral, dificultando a captura de cativos e o comércio. Já na África Negra, as populações tornaram-se mais abundantes e belicosas. Os portugueses levavam comumente mais pancadas do que distribuíam.

Desde meados do século 15, os lusitanos estabeleceram o forte de Arguim, ao norte do rio Senegal, transformando a Alta Guiné no maior centro de captação de cativos, agora comprados às comunidades africanas da costa, que os traziam de regiões próximas e distantes do interior. O padrão mercantil lusitano de obtenção de cativos foi imitado pelas demais nações européias. Até o fim do tráfico transatlântico, em 1867-8, os europeus simplesmente compraram cativos de senhores e negociantes africanos, nas feitorias, presídios e castelos do litoral. Navios fundeados ao largo das praias embarcavam igualmente cativos. O tráfico foi sempre uma questão econômica e de classe, e jamais fenômeno étnico exclusivamente europeu.

As feitorias mais pobres eram dirigidas pelo feitor, europeu ou mestiço, secundado por um escrivão europeu e ajudantes africanos. As rústicas instalações eram cercadas por um muro de troncos, por uma cerca de espinho, por uma simples vala, que as protegiam de ataques e dificultavam a fuga dos prisioneiros. No portão principal, permanecia um velho canhão voltado para o interior do cercado. Uma torre de madeira controlava o mar e as vizinhanças. As cabanas do feitor, dos ajudantes e dos comerciantes eram de adobe, chão batido e cobertas de palha.

O barracão dos prisioneiros era uma simples cobertura, sem paredes, cercado por uma segunda paliçada, onde os cativos permaneciam atados a uma corrente, presa a dois pilares. As mulheres e as crianças circulavam no interior do cercado dos barracões. Era dura a vida espiritual e material do cativo à espera do embarque. A mortalidade era elevada. Na costa, os alimentos eram escassos e caros. Os cativos passavam fome ou comiam mal. À espera dos tumbeiros, trabalhavam em roças de subsistência. Eram também obrigados a se exercitar e a se banhar, em grupo, no mar, onde lavavam os olhos e a boca, com a água salgada, para prevenir as oftalmias e o escorbuto.

As feitorias simplificavam e rentabilizavam o tráfico, aproximando os comerciantes africanos e os tumbeiros. Comerciantes africanos chegavam do interior, sozinhos ou em caravanas, trazendo arroz, cera, marfim, ouro, peles, pimenta, penas de animais, óleo de palma etc. e sobretudo cativos. Os feitores deviam ter os barracões repletos de prisioneiros quando da chegada dos tumbeiros que, em geral, abasteciam-nos com as mercadorias exigidas pelos africanos - álcool, algemas, armas, espelho, ferramentas, fumo, grilhões, ouro, pólvora, tecidos, barras de ferro etc. Os tumbeiros demoravam-se nas inseguras e insalubres praias apenas o tempo de desembarcar as mercadorias e embarcar a carga humana. Não raro, esperavam de quatro a cinco meses para que cativos chegassem do interior e fossem negociados nas feitorias.

A construção de uma feitoria exigia capitais reduzidos e podia ser transferida facilmente, quando os cativos escasseavam ou encareciam. Os castelos eram construções poderosas e caras permanentes mantidas pelas Coroas européias e por companhias monopolistas. Tinham altas muralhas, torres, pátios internos, vastos armazéns, potente artilharia, guarnição européia e africana. Elas serviam também como apoio à navegação nesses remotos mares. Era ilusório o poderio dos castelos, situados a milhares de quilômetros da Europa. Sua segurança dependia dos senhores africanos da região, que exigiam taxas e tributos para simplesmente não impedir que as caravanas chegassem do interior. Apenas as praias da Costa de Marfim tiveram 23 castelos e fortes em funcionamento.

Desde fins do século 15, em Angola e Moçambique, os lusitanos iniciaram pioneira e isolada penetração dos sertões africanos. Para garantir a chegada de cativos e mercadorias na costa, fundaram pequenos presídios ao longo do curso de rios como o Kuanza e o Zambeze. Essas pequenas feitorias militarizadas tributavam e comerciavam com as populações do interior para obterem cativos e mercadorias. Senhores africanos resistiram a essa penetração portuguesa, para não perderem o controle do tráfico. A célebre rainha Nzinga Mbundi resistiu tenazmente ao domínio lusitano das rotas do tráfico do interior angolano. Quando os portugueses reconheceram-na como intermediária no comércio maldito, converteu-se ao cristianismo e adotou o nome português de Ana de Souza. Paradoxalmente, essa escravista africana tem sido objeto de homenagens no Brasil, mesmo por organizações negras – filmes, contos, etc.

É enorme ingenuidade se surpreender, indignar ou negar o fato de que, na África, o comércio de cativo dependeu essencialmente de senhores e de comerciantes negros ou africanos, que se mantiveram indiferentes à sorte de indivíduos tidos como seus patrícios. Não havia e não podia haver solidariedade geral, nacional, continental e sobretudo racial entre os africanos. Em verdade, as categorias africano ou negro eram exteriores às práticas do continente. Elas não descreviam relações sociais objetivas daquele contexto.

Na África da era do tráfico, as populações do continente organizavam-se segundo os múltiplos recortes familiares, aldeãs, comunitárias, no contexto de hierarquizações sociais que se fortaleceram e se perverteram fortemente, nas regiões envolvidas pelo comércio negreiro. O aristocrata e o comerciante africano não se identificavam minimamente com um aldeão reduzido à situação de cativo, mesmo quando tinham vínculos comunitários e étnicos próximos. A maior parte das populações direta ou indiretamente envolvida pelo tráfico jamais vira um branco, antes de chegar eventualmente ao litoral. Não existe base real para as atuais propostas de identidades e culturas africanas supra-sociais.

8. A Escravidão, Raça e Classe

O Brasil foi a nação americana mais acabadamente escravista. Foi uma das primeiras a conhecer a instituição e a última a aboli-la. Importou mais do que qualquer outra trabalhadores escravizados que produziram uma enorme variedade de produtos. Não houve região economicamente ativa de seu território que desconhecesse o trabalho feitorizado. A ordem escravista determinou profundamente a economia, a sociedade e a vida política nacional. A independência unitária brasileira nasceu de pacto das classes dominantes pela manutenção da escravidão. A longevidade da monarquia deveu-se à defesa intransigente da ordem negreira. Quando a escravidão ruiu, em 1888, a monarquia desmoronou, em 1889, como construção já sem fundamentos.

Dos 9 a 15 milhões de africanos que chegaram com vida na América, de três a cinco desembarcaram nas costas do atual Brasil. Eles eram em geral muito jovens e sobretudo homens. A alta taxa de masculinidade não se deveu à preferência dos compradores americanos, mas à prática dos vendedores africanos de reterem as mulheres como esposas, o que impediu uma hecatombe demográfica ainda maior. Os cativos praticando línguas, costumes e crenças diversas, ainda que regiões da África foram berços privilegiados do tráfico. Negreiros e escravistas procuravam jamais realizar viagens ou formar escravarias homogêneas, o que facilitava movimentos de resistência.

Não era a raça, a cor ou a origem que determinou a vinda e a exploração do africano nas Américas. Era a capacidade de trabalhar que sustentou e financiou a captura, o transporte, a chegada, a distribuição e a submissão dos cativos no Novo Mundo. O cativo era escravizado, essencialmente, por ser trabalhador, e jamais por ser africano. No Brasil, estreitamente vigiado, o africano, denominado de cativo ou negro novo ou boçal, sem saber falar a língua da terra e as práticas produtivas, era responsabilizado pelas tarefas mais pesadas e mais duras. Ao aprender rudimentos da língua e se enfronhar na produção, passava a ser denominado de ladino. O trabalhador escravizado nascido no Brasil era conhecido como crioulo.

As condições de existência do cativo variavam relativamente segundo sua inserção na estrutura produtiva. Eram em geral relativamente diversas as condições de trabalho e de vida do cativo labutando na moenda, no eito açucareiro, na mineração aurífera, no transporte de mercadorias, na economia pastoril, nos trabalhos domésticos, etc. Todas elas eram, entretanto, apenas mais ou menos duras e penosas. Os privilegiados por situações funcionais especiais – feitores, administradores, capatazes, pajens, mucamas, etc. – constituíam uma muito pequena minoria.

Devido à grande rusticidade da economia colonial americana, a produção escravista exigia forte exploração do produtor direto, para extração de quantidade de sobre-trabalho capaz de manter a rentabilidade da produção. Portanto, não havia o escravista bom ou mau, por além das eventuais variações de comportamento devido a idiossincrasias pessoais. Para não falhar na sua empresa mercantil, e falir vergonhosamente, o escravizador feitorizava necessariamente o cativo em forma muito dura. Em verdade, não havia bases matérias gerais para o escravizador bom.

Dominante no Brasil do início da colonização à praticamente até Abolição, o modo de produção escravista colonial dividia e opunha fundamentalmente a sociedade em duas grandes classes, a dos escravizadores e a dos escravizados. As próprias representações ideológicas paridas pelo escravismo, que ensejaram a desqualificação da pela negra e das práticas africanas, submetiam-se fortemente àquela determinação básica. Havia igualmente diversos outros modos e formas de produção não escravistas subordinados.

A manumissão foi instituição da Antiguidade retomada pela escravidão americana, que contemplou um número pequeno de cativos, com destaque para os urbanos, do sexo feminino, crioulos e já idosos. Ela contribuiu sobretudo para consolidar a ordem escravista, cooptando os segmentos mais dinâmicos dos escravizados. Nada impedia que um liberto, um crioulo ou um africano ou seus descendentes se transformasse em escravizador através da aquisição e exploração de trabalhadores escravizados. Foi igualmente importante a prole de portugueses com africanas, não raro, legitimada.

Na Colônia e no Império, a população com alguma afro-ascendência – livre, liberta, escravizada – era muito mais importante do que a atual. Ainda que os escravizadores fossem prioritariamente de origem européia, era longe de ser desprezível o número de proprietários de cativos afro-descendentes. Era também normal capatazes, feitores, capitães-do-mato, soldados de primeira linha negros e mulatos. Mesmo no contexto dos prejuízos e privilégios nascidos da cor impostos pela ordem escravista, a existência de africanos e afro-descendentes escravistas, livres, libertos e escravizados impedia identidade entre os oprimidos apoiada na cor.

9. Uma Classe Pateticamente Só

As classes escravistas portuguesas, luso-brasileiras e brasileiras mantiveram a escravidão do início da colonização, em 1530, até sua agonia, em 1888. Dos 510 anos de história brasileira, 380 deram-se sob a dominância do escravismo. São pouco discutidas as razões da enorme longevidade e solidez da ordem escravista brasileira, apesar das duras condições existência dos cativos. No Brasil, por graves limites objetivos e subjetivos, os trabalhadores escravizados jamais organizaram movimentos gerais contra a escravidão. As rebeliões mais organizadas limitaram-se a, no máximo, alguns municípios.

Os cativos enfrentaram em condições fortemente negativas seus algozes sociais. Enquanto os escravistas conheceram sempre centralização política e forte unidade cultural e lingüística, a população africana escravizada praticava línguas e culturas diversas e encontrava-se fortemente atomizada em milhares de unidades produtivas, nas colônias e províncias semi-independentes. Eram impossíveis por razões geográficas e econômicas contatos horizontais amplos entre a população servil. Os escravizadores incentivavam a animosidade entre os cativos nascidos na África e no Brasil. A diversidade cultural foi minimizado apenas com a ladinização e crioulização das escravarias, sobretudo após o fim do tráfico, em 1850.

Era também muito baixa a idade média dos africanos e africanas desembarcados nas costas do Brasil – não raro eram pouco mais, pouco menos do que adolescentes. São ideológicas as visões gentis sobre uma sociedade escravista onde os cativos alimentavam-se regiamente, trabalhavam pouco, jamais eram castigados, ao estilo do trabalho Ser escravo no Brasil, da historiadora Kátia de Queirós Mattoso. Apesar dessas visões românticas e gentis da sociedade escravista, era muito baixo o nível cultural da população escravizada, sobretudo devido às longas, duras e rústicas jornadas de trabalho.

As gerações de cativos morriam e estropiavam-se precocemente, sendo incessantemente substituídos por cativos novos, chegados da África, pouco preparados para uma resistência à opressão fortemente reprimida. A contínua renovação dos trabalhadores escravizados dificultava a formação de tradição de luta e de consciência anti-escravista. Por razões diversas, o escravismo colonial jamais conheceu elite de cativos empregados em tarefas complexas e de nível cultural mais desenvolvido, como na Antiguidade. Na segunda metade do século 19, talvez apenas um em cada mil cativos soubesse escrever e ler, mesmo rusticamente.

Duas enormes barreiras dificultavam a luta servil. O escravismo dominava a sociedade e a produção no Brasil colonial e imperial, tecendo rede de consenso e de interesses sociais que extravasava fortemente os círculos dos grandes, médios e pequenos escravizadores. Os próprios cativos mais preparados e em melhores posições relativas sonhavam com a muito difícil mas não irreal possibilidade de alcançar a alforria e transformar-se em escravizadores. O liberto dificilmente fraternizava com o cativo. A cor da pele não unia horizontalmente os trabalhadores escravizados com os afro-descendentes libertos e livres, pobre e ricos.

Jamais se gestou no seio da sociedade escravista brasileira forma de produção alternativa, superior à escravidão, criando setores sociais e alternativa geral à ordem negreira, como ocorreu nos USA, sobretudo fora da fronteira dos grandes estados escravistas. Para que ela surgisse, a escravidão teve que ser abatida. Os trabalhadores escravizados rebelavam-se em forma isolada ou em pequenos, médios e grandes grupos, no geral, não contra a escravidão como instituição, mas contra suas escravizações, sobretudo através da fuga, dos quilombos, das insurreições. No início do século 19, cativos baianos conspiraram para sublevar-se, libertar-se, matar os brancos e escravizar os mulatos.

No Brasil, fora raras exceções, todos os grupos sociais livres, não importando a cor de suas peles, dependiam direta ou indiretamente do esforço do trabalhador escravizado. Por séculos, os cativos Brasil lutaram no Brasil pateticamente sós, sem contarem com algum apoio entre as classes livres ricas, pobres e miseráveis, fossem elas brancas, pardas, mulatas e negras. Uma realidade que mudaria apenas com o advento do movimento abolicionista.


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