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Desarquivando a tortura: a luta de um passado ainda presente

290312_milicos2Brasil - Diário Liberdade - [Victor de O. P. Coelho] Vou comentar um evento do qual participei tanto como “ator” como de observador: a manifestação ocorrida em frente ao Clube Militar no Centro (Cinelândia) do Rio de Janeiro. Tal manifestação foi motivada pelo fato de que militares da reserva havia programado um evento de comemoração de 64 – ano do Golpe que institui a ditadura militar. Como se sabe, os defensores do regime não usam os termos “golpe” e “ditadura”, preferindo “Revolução” e “governo cívico-militar” que teriam salvado o país de uma suposta e imaginária “ditadura comunista”.


Este texto faz parte da quinta blogagem coletiva do #desarquivandoBR

Essa disputa semântica acaba sendo apenas pano de fundo para o cinismo da comemoração, comemoração que é feita todo ano, comemoração feita pelo lado que, frequentemente, conclama que se deixe o passado para trás, que recorda a Lei da Anistia toda vez que parte da sociedade civil procura, como é legítimo, reivindicar que o passado simplesmente varrido para debaixo do tapete seja objeto de maiores esclarecimentos. Recentemente foi debatida e aprovada (finalmente) uma Comissão da Verdade, diante da qual voltaram as acusações sobre “revanchismo”. Mais grave: os militares saudosos da ditadura, que a princípio prezam a hierarquia e o comando, insubordinam-se contra a autoridade maior – a presidência da República – ao redigirem um manifesto contra a comissão e por organizarem um ato apesar da proibição feita pela presidenta Dilma Rousseff.

Em primeiro lugar, torna-se difícil exigir perdão e “bola pra frente” sobre um passado de torturas e assassinatos cometidos pelo Estado. Só pode ser perdoável aquilo que a princípio também pode ser punível, além de que o ato de perdoar está necessariamente ligado a um momento de reflexão, e não se reflete sobre passado interditado quando se trata de debate público e institucionalizado no âmbito dos poderes da República e do Estado Democrático de Direito.

Em segundo lugar, o passado de que falamos é ainda presente bastante vivo para muitas pessoas que até hoje desconhecem o paradeiro dos restos mortais de seus parentes mortos pela ditadura. Para outras, as leis são uma realidade mais distante que os abusos de autoridade que ferem psicológica e fisicamente, incluindo a prática de tortura. Temos aí, aliás, uma contradição na própria esfera legal: a Lei da Anistia – que é reivindicada para interditar a punição de torturadores – bate de frente com o fato de que o Brasil é signatário de leis internacionais para as quais o crime de tortura é imprescritível. Essa contradição se torna viva quando agentes – da sociedade civil organizada e do próprio Estado – tentam avançar políticas de direitos humanos. Valem-se, para isso, de uma forte representação política no poder Legislativo e de forte legitimação ideológica na oligarquia midiática – ela mesma filha da ditadura, ou da “ditabranda” como chegou a dizer a Folha de São Paulo.

Mas pelo menos agora o silêncio e os interditos começam a ser enfrentados. Nos últimos dias, conjugam-se alguns bons eventos: os capitães de Mar e Guerra Fernando Santa Rosa e Carlos de Souza emitiram um contramanifesto classificando o outro (contra a Comissão da Verdade) de manifesto escrito por “fascistas saudosos da ditadura”; a ação do Levante Popular da Juventude que, inspirada em ações similares ocorridas na Argentina e no Chile, promovem movimentos para denunciar, em frente de suas residências, a presença de torturadores, alertando os vizinhos e pedindo punição; e agora, o processo aberto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da OEA, visando a investigar o país pela não punição dos responsáveis pelo assassinato de Vladimir Herzog.

Hoje foi a vez também de a comemoração feita no Clube Militar enfrentar uma manifestação contrária, realizada em frente ao edifício. Tomei conhecimento através de uma página criada no site Facebook, que alertava para o evento, desta vez antecipado para o dia 29 de março. Fui até o local motivado a participar da manifestação, ao mesmo tempo curioso de saber quantas pessoas compareceriam (na página do Facebook mais de duas mil pessoas haviam confirmado presença, mas eu já sabia que na prática é a minoria que se dispõe a comparecer por conta de dificuldades de tempo e/ou disponibilidade real). Eu particularmente sou péssimo em calcular número de pessoas reunidas em multidão, assim como de medidas de espaços, mas acredito que as primeiras informações saídas dos sites de internet estão próximas da verdade: cerca de 300 pessoas. Grupo significativo que fez bastante barulho.

Cada “milico de pijama” (na verdade, trajados com elegantes ternos, como mandava o figurino) que entrava no edifício teve sua paz de “salvador da pátria” perturbada por gritos de “torturador”, “assassino”, “estuprador” e por breves canções que revelavam que certas verdades sobre o passado (do país e desses senhores) não conseguiu ser apagada. Precisavam de uma breve escolta da PM que se posicionava em frente ao edifício para conseguirem entrar, cercados que ficavam pelos manifestantes. Palavras de ordem pediam punição, exigiam justiça. Bandeiras de partidos e movimentos de esquerda, cartazes com os rostos de desaparecidos, um ativista distribuía cópias em folha A4 cada uma com um rosto e nome. Eu fiquei com o pequeno cartaz com a memória impressa de Ranúsia Alves Rodrigues. Uma ativista de cerca de vinte e poucos anos deu um tom de maior dramatização ao marcar cada um desses rostos impressos com tinha esprei vermelha, no alto da cabeça. Tinta vermelha que havia sido jogada na calçada em frente ao Clube Militar como forma de lembrar o sangue derramado das vítimas da ditadura.

Bem mais tarde, ganhei o cartaz de uma jovem que precisava ir embora e que quase todo o tempo estava perto de mim e parecia, como eu, ter ido para lá de forma “independente” (sozinha e sem pertencer a alguma organização ou partido), cartaz que dizia “64, nunca mais!”. Alguns minutos depois de eu ter chegado e ter gritado os primeiros brados de “torturador”, uma moça se aproximou e me perguntou o motivo da manifestação. Disse-lhe sobre a comoração, a moça do cartaz logo se virou e complementou “coisa que fazem todo ano, só dessa vez tomei conhecimento”, com a expressão indignada. Esse que vos escreve também só tomou conhecimento do evento graças ao Facebook, e confessa também que, pelo jeito reservado, não conversou com ninguém e não perguntou o nome da moça do cartaz. Além dela, outras jovens compunham uma bela massa de estudantes, de idade universitária, formada por moças e rapazes, da qual fizeram parte também pessoas mais velhas, coroas ou idosas, e até uma pequena turma de garoto(a)s em uniforme de colégio com suas bandeiras.

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Em alguns momentos os manifestantes extrapolavam o espírito de protesto e reivindicação e pediam para os militares “largarem as armas e virem à mão”, mas ressalto que não houve nenhuma agressão física aos velhotes. Alguns deles se mostram ofendidos, um se virou com sorriso cínico e fez o “v” da vitória nas duas mãos, um manifestante mais exaltado chegou a ser atingido por descarga elétrica de uma arma policial, no meio do empurra-empurra. Até aí, portanto, a manifestação ocorria de forma pacífica. Os ânimos exaltados até promoviam breves momentos de humor, voluntária ou involuntariamente. Em um momento chegou um ativista com um megafone, instrumento que cumpria muito mal sua função. Mas mesmo com meu problema de audição (não sou surdo, mas sou especialista em “heins?”), entendi com certo esforço que ele leria os nomes dos desaparecidos. Os dois primeiros nomes, entretanto, foram confundidos pela juventude exaltada aos gritos de “fascista!”, até que o rapaz com o megafone, de forma tranquila, pediu para que todos se acalmassem um pouco e prestassem atenção pois se tratavam na verdade das vítimas dos fascistas, então depois os nomes finalmente foram acompanhados pelos gritos-homenagem de “presente!”. Mas a lista era interrompida pelos convidados da cerimônia do Clube Militar que chegavam, momento em que o grito “fascista” reencontrava seu alvo. Pessoas que apareciam no parapeito da sacada do edifício recebiam o coro de “pula! pula! pula!” geralmente destinados a suicidas pela multidão inclemente, mas se sorriam demais recebiam um nada bem-humorado “tá rindo de quê, fascista?!”, e se retiravam.

Até aí não havia nenhum tumulto, os PMs demonstravam calma e até simpatia conversando com alguns manifestantes, e até aí não houve gritos específicos para a polícia (até hoje) militarizada. Mas o empurra-empurra e a perturbação do livre-direito de os velhos militares entrarem em sua toca para comemorar seu passado de ditadores motivou que a tropa de choque chegasse para fazer um cordão. Então os manifestantes gritavam palavras de ordem como “ei, você aí fardado, também é explorado!”, “polícia assassina, chega de chacina!” e outra pequena canção, que não me recordo exatamente, que ironizava a polícia fazendo o papel de proteger a “reunião de ladrões”. Foi então que, atrás de nós, na Praça Floriano, um grupo de jovens chamavam os demais para tentar impedir a prisão de uma pessoa, que era levada por PMs. Eu e as pessoas com quem falei não sabíamos direito quem era e o motivo, mas parecia ter sido um “cristo” que foi pego isolado e incriminado em nome de todos pelos xingamentos aos policiais.

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Com ânimos exaltados, os manifestantes resolveram bloquear a avenida Rio Branco e seria dispersa com esprei de pimenta e bombas de efeito moral. Policiais chegaram para controlar o trânsito enquanto os manifestantes se concentraram nas duas entradas – a principal, na própria Rio Branco, e na lateral, por onde alguns militares preferiram entrar – para novamente protestarem, enquanto alguns dos membros da cerimônia observavam das janelas a multidão nas ruas.

Tendo chegado ao local perto de 14h (a manifestação fora marcada meia hora antes, para se formam antes do horário – 15h – da reunião dos militares no Clube Militar), saí de lá pouco antes das 17h, e era esse o cenário. Ao caminhar com destino ao mercado perto de minha casa, pensei novamente no cinismo do discurso pró-ditadura que vejo sempre repetido em muitos debates (seja “ao vivo” ou pela Internet), por vezes com a convicção da verdade, de que a ditadura teria servido para “livrar o país do comunismo”. Sempre destacam que os grupos guerrilheiros (“terroristas” é o termo que usam) desejavam eles mesmos implantarem uma ditadura sangrenta, “o que fariam se tomassem o poder”. Mesmo diante dessa hipótese, ficam desconsiderados dois fatores: que tais grupos eram pequenos e nunca (como saberia qualquer serviço de inteligência que se preze) teriam condições de tomar o poder, e mais que isso, que a grande “onda” de grupos de esquerda armados surgiram após 64. Ou seja, temos que lidar até com a inversão cronológica. Junto a ela, o perdão compulsório da ditadura real pela evocação da ditadura de fantasia. Mais ainda, a desconsideração de que não “apenas” guerrilheiros em luta armada foram torturados e assassinados. Enquanto a esquerda já fez o debate, a crítica e a autocrítica publicadas em livros e trabalhos acadêmicos, enquanto conhecemos os nomes daqueles que lutaram contra a ditadura, restam do outro lado o silêncio, o poder de pressão política e de mistificação ideológica e as comemorações de gala daqueles que se valeram do regime.

Com a herança viva do autoritarismo, da tortura, do elitismo, da justiça ainda bastante seletiva, a luta pelos direitos humanos e pela democracia no nosso presente se faz simultaneamente pela evocação da luta dos que morreram no passado.

Victor de O. P. Coelho é doutorando em História Social da Cultura na PUC-Rio.


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