É que a minha, é uma geração espectadora, que observa o mundo debruçada de precário camarote, como se o futuro lhe fosse caso alheio. E é também da assistência que nos reconhecemos, na partilha de também nos lembrarmos dos desenhos animados do Tom Sawyer, do Dartacão ou de quaisquer outros com aquela cor desbotada que só têm os anos 80 e 90. Ao contrário da geração dos meus pais, a minha refugiou-se nas promessas fúteis de um individualismo consumista e autodestrutivo.
Creio que como geração, o que ao mesmo tempo nos define e aflige, é esta sensação de filme começado a meio: como quando não percebemos bem o que anda a fazer o bom da fita. E é justificada a confusão, que vivemos num mundo acossado de violentas contradições, em que o desarrazoado e o incompreensível se fizeram lei. Senão vejamos: Embora haja hoje mais cientistas vivos do que alguma vez existiram na História, 15% da humanidade nunca foi à escola; Embora a humanidade produza hoje 120% dos alimentos necessários à sobrevivência da espécie, 44 000 crianças morrem de fome todos os dias e 240 milhões de toneladas de cereais são inutilizados ou destruídos para manter os preços em alta; Embora todos os dias se inventem novas tecnologias para nos poupar tempo, cada vez somos forçados a trabalhar mais horas. E embora com apenas 1% do dinheiro que se destina anualmente à compra de armas se pudesse dar acesso a água potável a todos os seres humanos, tal não é possível para metade da humanidade. Como se compreende que todo o progresso tecnológico e filosófico de milhares de anos se traduza numa actualidade em que metade de todas as crianças vivam na pobreza? Ou como se explica que 40% da humanidade viva com 1% da riqueza para que 1% da população mundial detenha 40% da riqueza.
Não é difícil olhar à volta e reconhecer que o capitalismo condenou a Humanidade à barbárie. Detê-lo, reivindica mais que a compreensão metódica do mundo hodierno. Exige que nos armemos com os instrumentos filosóficos que permitem a sua transformação e que salvem a espécie humana da regressão catastrófica a estádios civilizacionais inferiores, que um pouco por todo globo vão mostrando a cabeça, como o feudalismo ou mesmo o esclavagismo. Um instrumento indispensável à análise e transformação da realidade é o materialismo dialético, que tentarei sintetizar neste artigo.
O materialismo dialético é a base teórica do marxismo, a ciência viva da transformação revolucionária do mundo. Convivem nesta doutrina duas correntes filosóficas: o materialismo e a dialética. Comecemos pela primeira.
O materialismo baseia-se no primado do hílico sobre o abstrato. Na premissa de que as ideias não nascerem do vácuo, mas que se erguem a partir de contextos materiais pré-existentes. Assim, o mundo em que vivemos determina a nossa maneira de pensar, e não o contrário. Nas palavras de Marx, "Não é a consciência dos homens que determina a sua existência", mas é a sua "existência social que determina a sua consciência".
Um aderente do idealismo, o antípoda do materialismo, argumentaria que a mudança da sociedade depende de primeiro mudarem as ideias das pessoas que a compõem, ou que "a revolução deve ser primeiro interior", ou mesmo que no fundo, o ato mais revolucionário é ler um bom livro de filosofia. Os materialistas poderiam replicar que sim, que queremos transformar as ideias dos trabalhadores, mas que a única forma de o fazer é transformando as condições físicas em que eles vivem, isto é, mudando a forma como a sociedade se organiza.
Mas a filosofia materialista tem aplicações práticas no nosso quotidiano. Por exemplo, o idealista argumentaria que a guerra contra o Iraque se fez em prol da democracia, os materialistas, pelo petróleo. O idealista diria que as descobertas se fizeram para espalhar o cristianismo, os materialistas, por ouro e escravos. O idealista, que a desigualdade é um acidente que se resolve com boa vontade; os materialistas, um crime económico premeditado, que só a força pode derrotar.
O materialismo esgrime que o processo de desenvolvimento social dos seres humanos está historicamente amarrado ao avanço tecnológico e dos sistemas de produção. A produção, como expressão máxima da relação do Homem com o mundo, traduz a sua luta pela sobrevivência sendo esse conflito, comum a todos os organismos vivos e todos os fenómenos físicos. Como tal, o lugar que ocupamos na produção e os conflitos que daí advêm, encerram em si o germe das nossas ideias.
Obviamente, este contexto material varia com a classe em que nos enquadramos: para a classe trabalhadora, a relação com o mundo físico está monopolizada pela busca incessante dos meios de sobrevivência, que ocupa e preocupa a maior fatia das suas vidas: a necessidade de ganhar um salário, de dinheiro para alugar uma casa ou de víveres para sobrevivência, são premências básicas que ao inescapáveis serem, forçosamente nos definem. A realidade material dos capitalistas, por outro lado, afirma-se pela detenção dos meios de produção e na acumulação paranoica de bens de luxo. É esse contexto, que sem cedências a determinismos cartesianos, determina como vemos o mundo.
No entanto, uma visão estreitamente materialista da sociedade, não ajuda a decifrar como ela muda. Voltemos então à primeira discussão com o proponente do idealismo: Dizia-nos o idealista que para fazer uma revolução, todo o trabalho deve apontar à educação dos trabalhadores. Contestámos nós, que a mudança social depende sim da alteração da realidade física. E o nosso amigo idealista esboça um sorriso escarninho: Se a transformação social depende da realidade física e a realidade física é arma dos que a mantêm propositadamente recuada, nenhuma mudança é exequível. É aqui que urge a componente dialética do materialismo: É no próprio processo de luta revolucionária por essas mudanças físicas (direito à educação, ao trabalho, à saúde, etc.) e na construção de uma nova sociedade, que as ideias se mudam verdadeiramente.
Na dialética, segundo Engels, "nada é final nem absoluto nem sagrado e revela o carácter transitório de tudo e em tudo; nada pode resistir-lhe exceto o processo ininterrupto de acontecer e desaparecer, uma ascendência perene do mais baixo para o mais alto". O motor da mudança é sempre o conflito, e todas as coisas são o resultado de uma luta: A relva, é o produto de uma batalha de séculos contra os pés que insistem em pisá-la; a areia, é o desfecho da contenda milenar entre a rocha e o mar; a morte, é o desenlace da pugna entre a vida e o tempo; o som, é o efeito audível da fricção entre dois átomos; a História, é o fruto inacabado da luta entre os escravos e os seus mestres. E os Homens, esses são uma guerra em si mesmos.
Mas, argumenta o companheiro idealista que esse aborrecido processo de pequenas manifestações, grevezinhas e protestos não leva a lado nenhum! O que a gente precisa é de partir esta merda toda, meter uma bomba em São Bento, greve permanente até o governo cair. Essas coisas... É que eu só não faço greves porque elas não duram o que deviam e só não vou às manifestações porque elas não são revoluções...
A lei central da dialética pode ajudar-nos a esclarecer o companheiro idealista. Trata-se do mecanismo de transformação da quantidade em qualidade. Um exemplo prático da aplicação desta lei pode-se ilustrar com a água: baixemos (quantitativamente) a temperatura da água e ela acaba por se transformar em gelo, alterando-se qualitativamente. Ao longo da história, as transformações sociais foram sempre corolário político da luta entre classes opostas por interesses inconciliáveis. Esse conflito, espraia-se diariamente em pequenas ações: manifestações, debates, greves. Mas o que ainda escapa ao companheiro idealista, é que quando a quantidade destes pequenos protestos atinge o ponto de ebulição, tal como a água, dá-se uma mudança qualitativa na sociedade, a revolução.
A História demonstra para além de quaisquer dúvidas que o materialismo dialético não se equivoca: Se a minha geração quiser sair da plateia e pegar a História pelos cornos, não pode delegar a política em ninguém sem fazê-la todos os dias com a sua prórpia luta. Só a longa e dura luta pelos direitos dos trabalhadores e das populações, pode engrossar o caudal que desagua em mudança. Será também essa mesma luta, a forjar uma nova consciência, que acabe de vez com a perversa cumplicidade entre explorador despudorado e explorado complacente.
Todos à Greve Geral!