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De quem é o Carvalhal? 122 anos da histórica revolta popular no Souto da Casa

140212_carvalhalPortugal - Diário Liberdade - [António Santos] No dia 12 de Fevereiro de 1890, há justamente 122 anos, o povo do Souto da Casa, pequena aldeia no coração da Gardunha, levanta-se em armas contra a mais rica e poderosa casa senhorial da Beira Baixa, a família Garrett. Em causa, está a tentativa de usurpação das terras baldias do Carvalhal, desde tempos imemoriais sob governo comunitário da população.


Dizia Saramago que todas as histórias podem ser contadas de outra maneira. Infelizmente a nossa, foi quase sempre contada da mesma. À força da palmatória ou pelo cassetete, fomos ensinados que somos um povo de guerreiros, descobridores e poetas. Mas de uma estirpe especial, daqueles brandos nos costumes, dúcteis no trato e dóceis no bater. E como obedientes taquígrafos, repetimos estes ditados desde os nossos casebres de camponeses, pescadores e operários. Temo-lo repetido desde que somos povo português e ainda antes disso. Memorizámo-lo à exaustão da memória, até não sermos aquilo que somos, até não pensarmos aquilo que sentimos, até nos separarmos de nós mesmos e olharmos o precipício na voragem da amnésia colectiva. Embora o ditado incessante a que os ricos chamam História nos chegue com o peso categórico de um axioma, correm subterrâneas, histórias por contar que refutam a oficial.

Corre o ano de 1890. Quem vem de sul, tem que apanhar esta estrada sinuosa de terra batida que serpenteia Gardunha acima até Paradanta, a última aldeia que o mapa assinala. A norte daqui é uma bebedeira de curvas que leva primeiro a Vale de Urso, depois a Casal de Álvaro Pires e ao fim da nava deste vale, a Souto da Casa, pequena ilha de granito num mar de verde encrespado.

Aqui, no mês passado, em Janeiro, D. Carlos I cedeu ao ultimato dos britânicos para abandonar as terras entre Angola e a contra-costa. Os que sabem ler, contam na taberna que acaba de cair a velha raposa e que agora há novo governo, que com um pouco de sorte não se lembrará de desforrar com destemido sangue lusitano a traição dos ingleses. É que esta terra sáfara ainda sangra as últimas guerras que inventaram para vir reclamar seus filhos. E em carne viva, preserva a lembrança de botas francesas, inglesas, liberais, absolutistas e tantas outras que pisaram estas mesmas pedras e que a gente mal distingue , que a fome que deixam, essa é sempre a mesma. E lá fora também, outras guerras perdem-se ou ganham-se com a persistência das estações, mas cá no Souto da Casa, a guerra é outra e perde-se todos os dias.

É como se o Souto da Casa, por efeito de qualquer bruxedo, estivesse imune à marcha da História. Ou talvez, tenha sido a própria História a decidir, no seu interminável cortejo de reis e generais, atalhar caminho e não perder tempo com este insignificante lugarejo. Como há cem e duzentos anos atrás, a vida no Souto da Casa é um suplício que só a morte liberta, valha-nos para morrer a Santa Madre Igreja. Entre o berço e o caixão, as costas doem-nos de sol a sol como feridas distendidas de tanto dobrar e levantar. As mulheres, passam o tempo prenhas, parindo em grutas pardas a que chamam casas uns bichos anónimos a que um dia chamarão alguma coisa, se não morrerem primeiro antes. E quando se souberem pôr de pé, metem-lhes uma enxada na mão e começam a cavar batatas. Sempre de um sol ao outro, todos iguais e às vezes piores. E mesmo isso é quando há trabalho...

O trabalho, devemo-lo ao Sr. Dr. José Maria Garrett, senhor da Casa com o mesmo nome e posseiro da terra até onde a vista alcança. O que seria da Beira Baixa, se não lhes desse trabalho o Dr. Garrett? Ou não tivesse o seu trisavô introduzido a cevada e o castanheiro? Ou não tivesse o seu tetravô inventado a Gardunha e a chuva? Mas respeitinho, que os Garrett são família antiga como as canções e as palavras e o Dr. Garrett merece-nos respeito hoje, como no passado nos mereceu corveia e talha. Mas quem é afinal o Dr. Garrett? Uns dizem que é homem alto e magro, assim de traços germânicos, e que fala francês com princesas europeias. Outros dizem, à boca pequena é claro, que é filho bastardo de D. Miguel. A verdade, essa, não se sabe, que nunca ninguém o viu pisar as suas próprias terras. Em lugar disso, a família Garrett faz-se representar no Souto da Casa pela figura do seu feitor, que dá pelo nome de António Antunes Aquém. Para quem não sabe o que é isso de um Feitor, digamos que lhe corresponde no feudalismo o papel de classe que ocupa hoje o primeiro-ministro: administrar a sociedade de acordo com os interesses da classe dominante e representá-la junto dos trabalhadores. Prossigamos.

Aquém é bem conhecido desta gente. Nasceu no Fundão, no seio de uma família pobre de guardadores de porcos, que conta a gente, nem tinham nem para o pão. Até que um dia, ninguém sabe bem porquê, o Dr. Aquém faz-lhe uma festinha na careca lustrosa e diz-lhe "vais ser meu cão". Mas não se enganem, ser feitor da casa Garrett é profissão dura. Significa ser odiado por mil em troco do amor de um. Significa estar acima desta cambada que não se lava e ainda assim, ter que viver entre eles para inalar-lhes o fedor e as doenças. Não, ser feitor não é para todos. Se acham que é fácil, ponham-se aqui no lugar do Aquém e vejam se eram capazes de se meter à frente desta multidão e dizer-lhes assim, preto no branco, que a partir de agora não podem cultivar mais os lameiros do Carvalhal.

É preciso coragem! Serão ao todo mais de mil, mulheres e crianças também. "Mas sempre pudemos!" Protestam alguns. Não faz mal! Deixa-os ganir, Aquém. A ordem está dada, se querem trabalhar aqui, têm de pagar por isso. E não queremos saber se os terrenos são baldios durante os meses das chuvas e deles depende a vossa sobrevivência. Partilhar, comunidade? Que é isso, meu Feitor? Sr. Garrett, Isto são ideias subversivas que chegam a estes infelizes de Paris com dezanove anos de atraso. Pois bem, ainda lhes deve estar para chegar a notícia do preço desse atrevimento: vinte mil jacobinos a arder de noite e de dia. Pois é, meu fiel Aquém, é preciso metê-los na ordem, atirando a matar, se preciso for.

Durante metade do ano, O Carvalhal é um enorme pântano onde D. Dinis se lembrou de mandar plantar carvalhos, ou soutos. São duzentos hectares de carvalho e castanheiro a meia hora do Souto da Casa por subidas alcantiladas e descidas íngremes. E todas as quartas-feiras de cinzas, reunia-se o povo para quinhoar pequenas hortas, que cada família cultivava como entender. Sempre foi assim desde que há memória. Até que um dia, o Dr. Aquém ouviu falar deste estanho costume e decidiu averiguar de quem são, afinal, as terras do Carvalhal. E após consulta dos registos fundiários disponíveis, verificou para seu espanto, que o Carvalhal não é de ninguém.

E por isso aqui hoje está o valente Aquém, sozinho à frente desta horda esfomeada. Grita-lhes que vão para casa, que não podem estar ali sem autorização. Mas ninguém se mexe. "O que se passa?" Pergunta-lhes. "Não me ouviram, estão moucos?" Até que alguém, lá de trás, grita "O Carvalhal é nosso!". Aquém puxa da pistola a rebate, aponta à muralha de gente com um gesto grosso e largo. Mas a parede de povo nem treme. Levanta-se uma voz "O que é do Sr. Garrett é seu porque o diz um papel. O Carvalhal é nosso porque são as nossas mãos que o lavram e é o nosso suor que o rega". Aquém está escarlate de ódio, tem o dedo no gatilho. Mas não dispara, faz as contas e vê que faltam balas para tanta gente, então, guarda a fria e berra nova ordem "Estou-me cagando para as vossas filosofias" Diz, e escarra para o chão. "Estão a ocupar ilegalmente as terras do Dr. Garrett." Os olhos injectados de raiva ameaçam saltar-lhe das têmporas enquanto pulam de cara em cara "Se vos volto a ver aqui isto vai ser feio, estão a perceber, seus desgraçados?!." Devem ter percebido, embora ninguém responda.

Durante semanas, as ameaças e as chantagens continuaram. Até que na tarde de 12 de Fevereiro de 1890, Garrett volta acompanhado de capangas de fora, todos de carabina em riste e mandando o povo interromper o cultivo e abandonar a propriedade dos Garrett. Então, como planeado, os sinos da igreja tocam a reunir. Camponeses armados saem às dezenas do mato, algumas mulheres levantam arcabuzes do chão e segue-se feroz tiroteio que obriga Aquém à retirada. Instala-se uma situação pré-revolucionária no Souto da Casa que dura quase duas semanas, com tiros nas ruas e um número desconhecido de mortos.

Até que na madrugada de 26 de Fevereiro, Aquém e uma vintena de guardas da Casa Garrett regressam ao Carvalhal a coberto da noite. Botas da tropa avançam furtivamente pelo meio das hortas, esborrachando tomates, esmagando couves e partindo batateiras. Mas não é essa a vingança que aqui os traz. Dois a dois, começam a serrar ao meio os castanheiros que são o sustento do povo. Em vinte minutos tombam árvores que levaram vinte anos a crescer. O que não esperavam é que um jovem pastor estivesse à coca, e corresse à aldeia a alertar o povo. Os sinos voltam a dobrar e numa questão de minutos, recomeça o tiroteio. Mas desta vez, o feitor é capturado e nessa mesma, os camponeses do Souto da Casa improvisam um tribunal popular para decidir o que fazer ao feitor. A todos os trabalhadores é dada a oportunidade de acusar o arguido e o rol de crimes não cessa de aumentar: espancamentos, roubo de salários, despedimentos injustificados, provocações... Por unanimidade, Aquém é considerado culpado de todas as acusações e são propostas várias penas, incluída a capital. Mas finalmente, acaba por imperar um veredicto diferente.

Decide-se forçar Aquém a cortar mais um reboleiro e a carregá-lo às costas do Carvalhal até ao Souto da Casa. Durante o caminho, a população vai-lhe perguntando: "De quem é o Carvalhal?" mas Aquém, para surpresa de todos, nem com a morte à frente cede e vai repetindo "É do Dr. Garrett". A comitiva prossegue e os trinta minutos que separam o Carvalhal do Souto da Casa fazem-se horas. O suor escorre-lhe pelo rosto, arde-lhe nos olhos, mistura-se com sangue que nem se sente de onde vem. "De quem é o Carvalhal?" a pergunta insiste, e Aquém responde "É do Dr. Garrett". Há-de morrer fiel à classe que o adoptou. Os cães ladram à sua volta, as crianças riem-se e a gente só o ajuda para o pôr de novo em pé. Duas hora feitas, a prova continua e juntou-se um enorme desfile com gente de todas as aldeias para ver o castigo do feitor. Alguns trouxeram gaitas e bombos e transformam o castigo em festa. Até que chegando a procissão ao adro, as massas repetem a pergunta que soa como ordem: "DE QUEM É O CARVALHAL?", e Aquém, vencido e meio morto suspira "é vosso".

"Meu Senhor, os camponeses do Souto da Casa tomaram o Carvalhal. Capturaram o seu feitor António Aquém e fizeram-no carregar um castanheiro até que ele reconhecesse que as terras pertencem a quem as trabalha. Mandam vossa excelência saber que o Carvalhal pertence ao povo da Rama do Castanheiro e que não autorizam vossa senhoria a lá entrar outra vez." Só podemos imaginar como se sentiu o Dr. Garrett: uma chispa de raiva nos olhos, o coração em cavalgada de ódio, uma espuma de fel branco a subir-lhe a garganta... Mas sabemos ao certo o que mandou fazer. Na manhã seguinte, a divisão do exército aquartelada na Covilhã, acompanhada por um delegado do governo de Lisboa, chega ao Souto da Casa para impor a ordem.

Profetizando uma recepção menos cordial dos revoltosos, ficaram surpresos com o acolhimento em ambiente de festa que estes lhes reservaram. Por outro lado, a monarquia estava demasiado descredibilizada para se pôr a massacrar camponeses: o recém-empossado governo regenerador de Serpa Pimentel parece frágil e inábil. E el-rei D. Carlos I reina como se já calculasse a bala que lhe está reservada. Mas sobretudo, o delegado do governo encontrou um povo pacífico mas disposto lutar pelo que é seu. E em face do que viu, mandou inscrever em lei, aquilo que já era há muito consuetudinário.

Desde então até aos nossos dias, o povo da Rama do Castanheiro celebra anualmente a sua vitória sob a decrepitude moral dos latifundiários. Os sinos da igreja dobram a chamar o povo, que carrega pelas ruas pequenas ramas de castanheiro, evocando o castigo dado ao feitor Aquém. Chegada a procissão ao Carvalhal, o regedor (hoje em dia o Presidente da Junta de Freguesia) anuncia a divisão das glebas em função das necessidades de cada família e com o seguinte adágio: "A terra é de quem a amanha e o sol é de quem o apanha". Passados 122 anos o Carvalhal continua a ser propriedade do povo.

Perdoem-me se acrescento da minha lavra ao som e à cor que a História perdeu com os anos. Infelizmente, acontecimentos da História dos trabalhadores como a tomada do Carvalhal, continuam a depender destes humildes subsídios. Faz falta pois, uma História do Povo de Portugal, como Howard Zinn a escreveu para os Estados Unidos. Aquela que existe, é meramente a história dos ricos e poderosos que aqui nasceram, feita à imagem dos seus interesses, na medida da sua imaginação e com insondável desdém pelos seus súbditos. E é da nossa amnésia histórica que procede este infortúnio a que parecemos votados: o de sermos eterna e alternadamente governados por crápulazinhos rasteiros como Pedro Passos Coelho ou corruptos boçais como José Sócrates. Tanto um como outro, são legítimos herdeiros de uma longa linhagem de filhos da puta, que desde sempre, com pontuais hiatos para ganhar fôlego, comandaram os nossos destinos. Hoje vivemos sob o jugo descarado dos descendentes da casa Garrett, sob o olhar atento de novos feitores Aquém. E diariamente, vemo-los espoliar aquilo que é nosso por direito: água, saúde, electricidade, transportes, reformas, subsídios, emprego. Gabam-se em directo da sua ganância milionária, riem-se deste povo acocorado e escarram-lhe na cara. Do alto dos seus privilégios, agitam sem temor as bandeiras da ingratidão e da desonestidade, fazendo da excepção, a nova regra. Mas se para as classes dominantes, a História é instrumento ao serviço da anestesia geral do sentido crítico, que para nós, trabalhadores, cumpra a mesma função dos sinos do Souto da Casa. Dobrando a rebate de altos torreões, convocando o povo para a luta, lembrando-nos que não muito longe daqui, há gente com coragem, a lutar pelo que é de todos. Todas as histórias podem ser contadas de outra maneira. A nossa, é a luta de um povo.


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