O assassinato em massa cometido por Israel contra o povo palestino que comemorava o Nakba (catástrofe) encontra seu marco de inteligibilidade nas recentes revoltas que sacudiram o mundo árabe. Durante sua irrupção, as oligarquias árabes e israelenses, sejam pró ou anti-norteamericanas, se tornaram cúmplices no objetivo de aplacar a intensidade das revoltas. Mais ainda quando elas têm como núcleo a "questão palestina": as bandeiras palestinas no Egito e a abertura da fronteira egípcia com Gaza dão testemunho da implicação das revoltas no destino da chamada "questão palestina".
Daí que o assassinato de palestinos na fronteira israelense não tenha sido uma ação levada a cabo por Israel exclusivamente, mas também pela Síria, que abriu as suas fronteiras para isso, colocando os palestinos como o que Giorgio Agamben chamou de homo sacer, tanto ante o Estado de Israel como ante o Estado sírio. Por quê? Porque ambos estão interessados em acabar com as revoltas: Israel, para permanecer como a "única democracia do Oriente Médio" (o que significa conservar sua posição hegemônica na região, com o apoio incondicional dos EUA), e a Síria, para que a oligarquia Alawid, à qual pertence Bashar Al Assad, continue no poder e evite a entrada da OTAN que, já faz tempo, vê com bons olhos a possível queda do regime graças às revoltas.
O regime sírio - herdeiro de uma revolução nacionalista realizada pelo pai de Bashar Al Assad, então pertencente à esfera da antiga União Soviética - é muito diferente do regime líbio. Este último carece de toda estrutura institucional interna para habilitá-lo a conter os embates das rebeliões. A institucionalidade do Estado sírio, por outro lado, é forte, conserva múltiplos dispositivos policiais que funcionam perfeitamente, lubrificados que foram, durante muito tempo, talvez tempo demais, pelas tecnologias da antiga União Soviética. Além disso, depois de 1967, a ameaça externa se individualiza na figura do Estado de Israel, e dos EUA como seu aliado incondicional. Nesse sentido, o regime sírio se manteve no poder tanto em virtude da consistência dos dispositivos internos como pelo fantasma da invasão estrangeira.
Por essa razão, me parece que a Síria constitui o ponto zero das revoltas, ou seja, a chave que consolidará sua força ou terminará com elas para sempre. Até agora, e apesar dos bombardeios lançados pelo exército sírio contra os manifestantes (a quem ele acusou com o velho discurso de que são "infiltrados de Israel" ou "agentes do imperialismo", enquanto elevava seus policiais e militares feridos à condição de mártires da causa nacional), as revoltas se mantêm com vitalidade inaudita. Os assassinados já chegam aos milhares, mas a força da revolta não caduca. Esta é a única maneira de sustentar a luta: na ação.
Nesse plano, haverá que se medir as consequências do recente apoio de parte do exército sírio aos manifestantes. Se o exército sírio se fratura, tudo se projeta na direção de uma guerra civil aberta ou tudo fica mais rápido e, junto com o exército, cai toda a estrutura do regime. Só a mobilização permanente da Intifada poderá dar as respostas.
Por enquanto, só podemos fazer uma coisa: insistir, tanto com aqueles que apoiam o regime e acreditam que os manifestantes são infiltrados de Israel, como com aqueles que são contrários ao regime e apoiam os manifestantes vestindo-os de novos yuppies informáticos que trarão o paraíso neoliberal, que saibam que a Intifada, por mais que solicite a intervenção da OTAN e lute para derrubar o regime de Bashar Al Assad, não é a OTAN: a Intifada árabe é algo diferente, radicalmente diferente, no meio desse jogo estratégico. A Intifada não faz mais que gritar: Kifaya! (chega!) para que a ouçam todos os povos da terra.
Rodrigo Karmy Bolton (Universidade do Chile) é de ascendência palestina e viaja com regularidade aos Territórios Ocupados.