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O galego e o português

130511_lingua_galego_portugues_cnb_artigBrasil - CBN - [Carlos Alberto Faraco] No último mês de fevereiro, foram realizados em Curitiba o VII Congresso Internacional e o XX Instituto da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).


Na oportunidade o prof. Xoán Carlos Lagares (da Universidade Federal Fluminense) e eu ofertamos um minicurso sobre as políticas linguísticas nos espaços lusófonos, com destaque à situação do galego na Galiza e da língua crioula cabo-verdiana em Cabo Verde.

Os temas e a ementa do minicurso chamaram a atenção da imprensa e fui algumas vezes procurado por jornalistas que queriam saber mais sobre o galego a partir de uma afirmação minha de que os falantes de português ignoram que galego e português são, no fundo, manifestações da mesma língua.

Aproveito, então, este meu espaço para comentar um pouco o assunto. A língua que designamos pelo nome de português é o desdobramento histórico dos falares românicos que se desenvolveram no noroeste da península Ibérica, numa área que abrange hoje o norte de Portugal e a Galiza (no noroeste da Espanha).

Dessa região, tendo por base o Condado Portucalense, avançaram para o sul, no século 12, forças comandadas pelo conde Afonso Henriques envolvidas no processo histórico da chamada Reconquista, ou seja, a retomada dos territórios ibéricos aos árabes. Essas forças levaram consigo para o sul a língua românica que se desenvolvera no noroeste da Península.
A extensão das fronteiras do Condado para o sul terminou por dar forma a uma unidade política que logo se consolidou como um reino autônomo, o reino de Portugal, quando, em 1139, depois da batalha de Ourique, Afonso Henriques passou a usar o título de rei. Poucos anos depois, em 1147, se deu a conquista de Lisboa e, progressivamente, a incorporação do Alentejo e do Algarve. Na metade do século 13, Portugal tinha já suas fronteiras continentais atuais claramente definidas.

O deslocamento das fronteiras para o sul, a constituição do novo reino (que se estendia do rio Minho ao Algarve), a fixação do seu governo no centro-sul (primeiro em Coimbra e, depois, em Lisboa) e a permanência da região ao norte do Minho sob o domínio do reino de Leão e Castela foram os principais fatores que concorreram para quebrar, em parte, a relativa unidade linguística a que os estudiosos costumam dar o nome de galego-português – língua que conheceu, no século 13, rica literatura lírica e chegou a ser utilizada literariamente mesmo por poetas castelhanos até meados do século 14.

O galego-português que foi levado para o sul acabou por ser identificado com o novo reino e passou progressivamente a ser denominado apenas de ‘português’. Como língua de um reino, adquiriu status político, veio a conhecer um importante desenvolvimento literário e foi levado para outras partes do mundo na esteira da expansão extraeuropeia de Portugal nos séculos 15 e 16.

Já o galego-português que permaneceu na região de origem da língua e fora das fronteiras do novo reino passou a viver sob forte pressão do castelhano, principalmente depois da unificação política da Espanha nos fins do século 15. Nessas condições, não adquiriu status político equivalente ao do irmão do Sul, deixou de ser escrito no início do século 16 (e só voltou a sê-lo no século 19) e ficou restrito quase exclusivamente aos falantes rurais.

Considerando os processos centrífugos que afetaram a antiga unidade linguística românica do noroeste da península Ibérica e considerando que a denominação das línguas é, antes de tudo, um gesto político-cultural, não é de todo inadequado assumir que modernamente o antigo galego-português se desdobrou em duas línguas: o galego e o português. A grande proximidade estrutural e lexical de ambas justifica, porém, que se as considere como variedades de uma mesma língua.

Em outras palavras, podemos afirmar que, do ponto de vista estritamente linguístico, não paira dúvida de que galego e português são uma e a mesma língua. No entanto, nessa área da identificação e denominação das línguas, nem sempre as razões puramente linguísticas são as mais relevantes. Assim, do ponto de vista político e cultural, reconhecer o galego como outra língua, embora intimamente relacionada com o português, contribui certamente para os esforços que, desde meados do século 19, se fazem na Galiza (a duras penas) não só para manter viva sua língua própria, como também para garantir a expansão de seus usos sociais.

Em sua participação na mesa-redonda “Temas de Romanística”, realizada sob minha coordenação durante o VII Congresso Internacional da ABRALIN, o prof. Xoán Carlos Lagares assim se manifestou sobre a questão do imaginário que separou galego e português e sobre os caminhos históricos do galego desde o século 16 até hoje (reproduzo aqui suas palavras porque elas contribuem para um esclarecimento dessas complexas situações linguísticas. Seu texto deverá ser publicado em número especial da Revista da ABRALIN destinado aos Anais do Congresso):

“Possivelmente, apenas os séculos 16 e 17 constituem um momento de efetiva mudança no imaginário sobre galego e português. Quando se inicia o processo de gramatização (Auroux 1992) de algumas línguas europeias, as variedades galegas não são contempladas e ficam à margem dessas transformações. Por isso é que [o sociolinguista galego] Monteagudo (2004, p. 256) considera esta afirmação do gramático português Duarte de Leão em sua Origem da Língua Portuguesa, de 1606, a primeira declaração de independência do português a respeito do galego:

Da qual língua galega a portuguesa se avantajou tanto, quanto na cópia como na elegância dela vemos. O que se causou por em Portugal haver reis e corte, que é a oficina onde os vocábulos se forjam e pulem e donde manam para os outros homens, o que nunca houve em Galiza (Leão 1983, p. 220).

“A “cópia” tem a ver com a abundância (“copiosidade”), de vocábulos e expressões, da língua, como consequência das diversas funções sociais em que é usada, e entre essas funções têm uma especial importância as que se realizam através da escrita. A elegância está relacionada com o uso cortesão, que nesse momento histórico, segundo o autor português, deve constituir o modelo para todos os falantes. Na Galiza, a partir de então, e sobretudo no século 18, com as políticas centralizadoras dos [reis espanhóis da dinastia] Bourbon, o galego sobrevive numa situação minorizada. A obrigatoriedade da língua espanhola na administração é, como indica Brumme (2005, p. 946), resultado de um processo paulatino, que culmina com a “Lei do Notariado”, de 28 de maio de 1862, em que se estabelece com total clareza que os documentos públicos deverão ser redigidos em castelhano.

“O galego entra na modernidade como uma língua sobretudo rural, falada pelas classes trabalhadoras, numa situação de bilinguismo diglóssico e substitutivo, embora continue sendo majoritária na Galiza até a atualidade. No século 19 inicia-se um movimento de reivindicação político-linguística e um ressurgimento literário que vai conseguir ter expressão legal, no reconhecimento oficial do galego por parte do Estado, só no ano 1939, durante a IIª República Espanhola (v. Mariño 1998 / Monteagudo 1999). Após a “longa noite de pedra” do franquismo, com a restauração democrática e a aprovação de um Estatuto de Autonomia para a Galiza, são implementadas políticas linguísticas destinadas, a princípio, a recuperar usos e falantes para o galego.

“A questão da especial relação histórica entre galego e português nunca deixou de estar no foco do interesse de todos os intelectuais engajados na reivindicação de uma língua galega. Os escritores em língua galega, que foram alfabetizados em castelhano, utilizam basicamente o sistema gráfico dessa língua, embora seja antigo o debate sobre os grafemas pelos quais deviam ser representados na escrita os fonemas inexistentes em espanhol (a nasal velar, a fricativa pré-palatal surda). Desde o início, é possível perceber a existência de uma tendência mais “populista” (partidária de simplificar o sistema gráfico) e uma tendência “cultista” (que procurava na tradição medieval e no português a possibilidade de criar um modelo ortográfico de prestígio). Essas duas tendências materializaram-se na segunda metade do século 20 (e sobretudo depois dos anos 80) em duas linhas enfrentadas, com visões diferentes sobre o que é ou deve ser o galego: a autonomista e a reintegracionista (v. Lagares 2010).”

Termino por lembrar que, mesmo considerando o galego uma língua autônoma do português, é importante não deixar de reconhecer, pelas implicações político-culturais daí advindas, que ambas  pertencem ao mesmo grande fonoespaço que poderíamos chamar de galego-lusófono.


Nota: O prof. Lagares usa a expressão “bilinguismo diglóssico e substitutivo”. São termos técnicos para designar realidades sociais em que os falantes usam duas línguas (são, portanto, bilíngues), mas em contextos diferentes (são, por isso, diglóssicos) – por exemplo, uma é usada nos contextos familiares e a outra, nos contextos públicos e oficiais. Quando esta última começa a ocupar os contextos daquela, diz-se, então, que se trata de um bilinguismo substitutivo.

Carlos Alberto Faraco é professor titular (aposentado) de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná (UFPR)


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