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Conversando com Fred Martins: a Música Popular Brasileira, entre Niterói e Compostela

fred01Brasil - Diário Liberdade - Conversamos em Compostela com um músico referencial na Música Popular Brasileira, a quem o acaso fez viver entre o Brasil e a Galiza, assumindo e reivindicando a unidade linguística entre os dois países.


Com quatro CD's já no mercado brasileiro, Fred Martins é continuador da tradição ligada à Bossa Nova e mantém vivo o espírito musical ligado à MPB. Fruto da sua vinda à Galiza e dos numerosos concertos com a cantora galega Ugia Pedreira, proximamente sairá num novo trabalho discográfico galego-brasileiro que ninguém deve perder.

A todo o anterior, soma-se o seu assumido interesse por quebrar os muros que têm mantido a Galiza e o mundo lusófono de costas viradas, o que, estando na Galiza, o converte num ativista musical da causa da nossa língua nacional.

Eis o resultado da entrevista que mantivemos com ele na cidade de Compostela no passado mês de Dezembro.

Diário Liberdade - Como foi a tua chegada à música?

Fred Martins - Eu tive a sorte, desde pequeno, de ter facilidade de aceder a música de altíssima qualidade. Nos anos 70 era o auge do que chamamos MPB (Música Popular Brasileira) e de autores que hoje já são clássicos: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, João Gilberto... que levaram a sua música fora das fronteiras do nosso país. Eles estavam aí a todo o vapor e era muito instigante.

A minha percepção é que aquilo era uma coisa normal, a poesia, a literatura, a música erudita que carateriza essa geração, com Vinícius e Tom Jobim inicialmente. A quebra dos limites. Caetano cita Fernando Pessoa e os poetas concretistas, o barroco... há um diálogo muito rico da música popular com a dita "alta cultura" e era música popular mesmo. Era uma cultura muito sofisticada que estava na rádio, nas novelas, no cinema, no dia a dia da gente.

Eu cresci com isso, escutando autores como João Bosco, o violinista, parceiro do Aldir Branco, letrista, que fazia sambas e bolero brasileiro muito sofisticados. Ele era um pouco mais novo que o Chico Buarque e eu, um garoto de classe média, vivi essa experiência...

DL - Isso mudou?

Mudou. Hoje tem resquícios desse mundo, mas é muito minoritário. Aquela Geração dos Festivais, que apareceu após a Bossa Nova, teve grande prestígio junto da classe média, que tinha mais peso do que hoje, também na universidade.

A música brasileira era desfrutada na rua já no século XIX, no carnaval e outros eventos públicos, como os religiosos ou encontros populares. Havia também bailes de salão e todo isso foi criando o primeiro mercado musical popular brasileiro. O gramofone e a rádio foram também importantes na extensão de estilos como o samba, que afirmaram a identidade brasileira.

Quando aparece a TV nos anos 60, essa cultura musical está já solidificada. Aí havia uma juventude sedenta de novidades e isso fez borbulhar a música e as televisões não foram alheias. Organizaram festivais com os jovens que estavam aparecendo, que eu referi, os que vieram depois da Bossa Nova. Esses festivais alavancaram artistas como Chico, Caetano, Paulinho Viola... e nos anos 70 já eram muito conhecidos, publicando um disco por ano. Esse grupo de artistas era muito aberto, atualizando o manancial riquíssimo que desaguou na Bossa Nova: o samba, o choro, o baião, a música do nordeste... autores como Ary Barroso, Noel Rosa, os sambistas Nelson Cavaquinho, o Cartola, Ismael Silva... fre05O impacto da Bossa Nova foi muito grande e tinham que dar uma resposta à altura.

Porém, o próprio Paulinho Viola comentou que no fim dos anos 70 a coisa começou a mudar. Começou a ser mais importante colocar as músicas nas novelas do que encontrar um caminho estético coerente e potente, artisticamente válido. As leis do mercado substituíram isso, como no mundo inteiro.

Hoje o mercado e a indústria foi tomando o controle de todo o processo, dos textos, da música... tudo passou a ser preestabelecido. O mercado acabou com a música brasileira de questionamento.

A ditadura adiou 30 anos as mudanças que nos anos 60 começavam a acontecer. Tornou o Brasil um país colonizado, para as grandes elites, que olhavam para o exterior. Vendeu o país ao capital estrangeiro, como na América Latina inteira aconteceu. Na música, as gravadoras nacionais quebraram e foram compradas pelas multinacionais, que queriam fazer dinheiro rápido.

Nos anos 70 houve uma enxurrada muito grande da música anglo-americana, pseudo-cosmopolita.

Depois da ditadura, veio a festa capitalista neoliberal, e essa cultura musical com raízes profundas na cultura, na literatura... que sustentava o discurso alternativo ao da ditadura, pela atitude dos músicos. Essa rica cultura, nos anos 80 foi tida por algo antiquado, antimoderno. Os lobbies e o capital venderam muito disco, compraram os espaços nas televisões e nas rádios...

DL - Mas hoje há produções de interesse no Brasil...

Há, sim, há um continente imenso de artistas lutando pela visibilidade. Só que com essas regras, fica difícil chegar à gente e o povo perdeu esses referenciais. Vinícius de Moraes, que era um poeta, e Chico Buarque herdando isso e a música de Tom Jobim, reconhecida como a melhor do planeta... isso aí desapereceu do horizonte da cultura popular, exceto pequenos redutos de pessoas com sensibilidade especial e que buscam manter o que foi.

DL - A chegada de Lula foi vista como uma expectativa. O que supôs para o panorama musical?

O poder está estruturado de maneira tão viciada que não dá para encontrar uma saída. Acho a sociedade brasileira muito entorpecida, não discute problemas que estão aí desde sempre: muita gente sem escola, sem proteção, abandonada, sem cidadania. Existe uma tendência perversa que reproduz o medo e o preconceito, como se vê nas políticas de terror aplicadas no Rio do Janeiro, de Apartheid mesmo. Tenho ali um amigo, o Marcelo Freixo, que fala nisso: é Apartheid mesmo, como também se vê no documentário 'Notícias de uma guerra particular'. Aí um ex-secretário de segurança do Rio, Hélio Luz, que fala de Apartheid como agente do Estado, mas isso está fora dos meios de comunicação.

Existe uma sociedade para negros, que moram em favelas, gente pobre, com escolas muito precárias, quando têm.

MÚSICA E COMPROMISSO

DL - Qual a relação entre a música e o compromisso social?

Toda a arte tem posicionamento político, mesmo que não seja direto. O que hoje faz o hip-hop dantes fazia o MPB, servindo para denunciar o que está acontecendo. A estética vem a reboque da necessidade de falar de um problema muito sério. Tem grupos como os Racionais, de São Paulo, que alcançaram um equilíbrio muito interessante entre compromisso e estética, mas em geral acontece um uso mercadológico de todo isso.

DL - Que opinião tens do que aconteceu faz umas semanas no Rio, com a ocupação militar das favelas?

Quando há crises de 'descontrole' como há sempre, devido a um contingente imenso entregue ao 'deus-dará', sem escola, sem projeto de futuro, de existência, então estoura. Aí impõe-se um controle militar, em função de muito interesse no tráfico de armas e de drogas. Hoje ainda é feita a mesma política de sempre, de não resolver os problemas dessa gente, não olhá-la como gente, mas como massa que, no máximo, vota e deve ser cooptada na época de eleições.

As milícias controlam essas populações carentes e o governo faz vista grossa. O Marcelo Freixo e o Luís Eduardo Soares falam muito bem nisso.

fred02DL - Não tens grandes expectativas no novo governo?

Há pouco um político do PT falava de que foi feito pouco e o possível, na visão dele, mas que havia um grande perigo de as forças atávicas presentes na sociedade voltarem. Há muita coisa que ficou sem fazer, como a concentração midiática em poucas mãos de quem não tem interesse nenhum no bem social.

Como superar isso continua sendo a grande questão no Brasil e é um grande desafio para o PT, no poder de um país com uma estrutura muito corrupta, cega a qualquer interesse social. O projeto do PT está sendo se manter no poder, depois de tanta direita sem diálogo. Agora, o PT tem ainda pessoas com uma história, com uma visão diferente, que quer uma mudança, mas na prática isso é muito difícil, até porque a sociedade não está arejada, tem um problema até psicológico.

A RELAÇÃO COM A GALIZA

DL - Queríamos saber sobre a tua relação com a Galiza, à qual chegaste já como músico reconhecido e que seguramente nem conhecerias o nosso país.

Para mim foi uma descoberta. Na verdade, o primeiro encontro foi por acaso. Eu estava num sarau na casa de um amigo, em São Paulo. Era um encontro musical e o amigo disse-me que queria que eu conhecesse um músico "espanhol" muito bom, que fazia "música celta". Aí eu vou falar com esse cara, e vejo que ele fala português comigo. Eu disse-lhe: "mas como? Você é espanhol e fala português? Ou é português mesmo?" Ele respondeu: "Não, eu sou galego, na verdade".

Ele era o Carlos Núñez, que estava fazendo uma pesquisa sobre o trabalho que iria publicar depois. Ele foi o primeiro galego que eu conheci. Então falamos, tocamos juntos ali no encontro musical. Ele tocava flauta e tinha uma gaita de foles guardada. Todos queriam que ele tocasse, mas ele não, porque era um apartamento...

DL - Os primeiros portugueses a chegarem ao Brasil eram do norte e levavam a gaita de foles. O primeiro que eles fizeram foi tocar para ver a reação dos indígenas. Isso está recolhido no primeiro texto literário brasileiro, mas, há hoje conhecimento no Brasil sobre a gaita de foles galego-portuguesa?

Não, isso perdeu-se na memória e para nós a gaita de foles é coisa de escoceses, relacionada com uma propaganda de uisque escocês...

DL - Mas outros instrumentos galegos, como a pandeireta e o pandeiro, chegaram e estão ainda no Brasil,...

Sim, inclusive a sanfona, que nós chamamos viola de roda, embora não se tenha desenvolvido, talvez pela dificuldade e falta de gente que soubesse tocar bem. A viola fez mais sucesso.

Porém, a música galega está no nordeste brasileiro. Há motes galegos na música popular nordestina, misturados e atribuídos sempre a Portugal, seguramente pela confusão entre galegos e portugueses. Acontece a mesma coisa com a fala. Quando um galego fala a sua língua, sem misturar com o espanhol, para mim ele está falando português, se bem mais nítido do que o falado em Portugal. Eu tenho um amigo português que, às vezes, tem que repetir porque não entendo bem e digo para ele: "fale de novo"... ele é dos Açores (risos).

Quando eu cheguei à Galiza, não levava nem um mês, eu fui ver um contador de histórias, Quico Cadaval, e eu entendi tudo. Aquilo era português com um sotaque diferente, mas muito claro.

fred07DL - Continua falando-nos do teu contato com a Galiza...

Sim, depois de eu conhecer aquele galego em São Paulo, eu li poesias galegas publicadas no Brasil sem mudanças, assumindo que é a mesma língua. Também alguns grupos de música antiga brasileira tocavam cantigas de amigo galego, de Dom Dinis, Martim Codax... o galego era para nós um português arcaico.

Depois eu conheci Ugia Pedreira no Brasil e voltei a comprovar que eu compreendia o que eles falavam. Também eles não tiveram problemas de compreensão no Brasil. Aí eu vim para participar num festival à Galiza. O galego é bem compreensível para um brasileiro, com alguns problemas só com os sotaques muito rurais e regionais, mas isso acontece também com o português no Brasil. No interior de Minas Gerais, por exemplo, dois matutos falando têm também formas muito próprias difíceis de perceber. A mim aconteceu-me isso no Courel. Aí eu tive que prestar atenção para entender.

O problema é que existe uma barreira que impede a relação do galego com o português. Isso cria um pânico quando um galego ouve falar um português, mas eu acho que há muito trabalho hoje a ser feito para quebrar essa indisposição ao entendimento. Galego e português são basicamente a mesma língua e, o que não é comum, é riqueza. Há coisas no galego que havia no Brasil do século XVIII e XIX, e o mesmo acontece com Portugal. Até o Saramago é legendado quando há uma entrevista dele no Brasil.

DL - Há portanto muito trabalho a ser feito...

Sim, para mim o conhecimento da Galiza foi uma injeção de ânimo. Com a Ugia, estamos fazendo concertos e gravando um CD, o trabalho não foi pensado, pois não somos "filólogos reintegracionistas de bandeira vermelha" (risos).

A minha experiência é sentir-me num lugar onde posso falar a minha própria língua. A Ugia canta sem mudar o acento dela e eu canto sem mudar o meu acento, tudo é natural.

DL - Vocês estão gravando...

Sim, e o disco vai ser também lançado no Brasil.

fred04DL - O que opinas do panorama musical galego?

Eu acho muito interessante, um pouco virgem, uma tentativa de resgate dessa tradição comparável com o que agora o Brasil vive em relação ao samba, pois há muita gente de classe média que não tinha a ver com o samba da favela. Há novas escolas se formando, ainda que não seja samba de morro, mas é muito interessante.

Aqui acontece algo parecido, com a gente nova tentando falar aquela música folk tão bonita...

DL - Podes recomendar alguns autores galegos a quem nos lê no Brasil e brasileiros para quem nos lê na Galiza?

Da Galiza, as Ugias (Ugia Pedreira e Ugia Senlhe), a Guadi, Berrogüetto, Marful (que tem muito a ver com a MPB, pela maneira como se apropriam de tudo)... Eu tenho muito em comum com a Ugia porque partimos da raiz anterior, eu da Bossa Nova e ela das cantigas que herdou da mãe, da pandeireta, as coplas... nesse convívio há pontos em comum que vão aparecendo. Também o Germám com a sanfona, o Óscar Fernandes, também com a sanfona, e que tem tudo a ver com o nordeste brasileiro... O Florêncio, que é um violinista cego de Vilares, na montanha e que cantava na rua. Nós temos também essa tradição no nordeste. A música ibérica está ali na parte melódica e harmônica, a ritmica é africana, indígena... uma mistura. Mas o baião, por exemplo, é a rumba de vocês, tocada nos bailes organizados pelos ingleses no nordeste, os chamados "for all", que viraram "forró".

DL - Agora, autores do Brasil recomendados para galegos e galegas...

Já que falamos de forrô, Luís Gonzaga e Jackson do Pandeiro são grandes mestres que fazem o mais autêntico forrô. Aí vocês vão encontrar músicas que são rumbas. O Jackson do Pandeiro era um músico de feira, tocava pandeireta e improvisava, numa época muito bonita e genuína.

Também há que conhecer Noel Rosa, porque afora a música do nordeste, que é uma árvore à parte, tem o samba, que é a viga mestra da música brasileira, que se tornou, para o mundo, a música que dá a cara e a identidade do Brasil, com todos os seus tipos e tópicos. É também muito a história do Rio como capital política, econômica e cultural. Noel Rosa é o primeiro sambista que faz esse aprofundamento, que minha geração percebeu, de dialogar com todas as culturas do País, e ele fez isso nos anos 20 e 30. Sendo da classe média, subiu aos morros e aprendeu o samba, como boêmio, convivendo com gente de todos os níveis. O Tom Jobim ou o Vinícius de Moraes não se entendem sem conhecer o que já era o samba com Noel Rosa. Também os brancos cantando a música dos negros, que foi em aqueles anos o samba.

(Todo o material gráfico incluído nesta informaçom é trabalho próprio dos repórteres do Diário Liberdade, de reproduçom livre, de preferência citando a fonte)


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