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230515 trabalhadoraGaliza - Sermos Galiza - [Carlos C. Varela] Havia um rei que, antes de casar, quijo assegurar-se de que no seu reino fossem os homens os chefes da casa.


Primeiro consultou com um criado, quem reconheceu que na sua casa governava a mulher, "como em todas as casas". Estranhado, o rei organizou uma visita por todas as moradas do reino. Nelas oferecia um presente a escolher: ou um cavalo ou uma vaca, pensando que de mandar o homem este sempre preferiria o cavalo. Mas após vários dias de viagem polas aldeias do reino, repararam em que apenas quedavam vacas na comitiva enquanto não deram nem um só cavalo. Já desesperado, o rei entrou, cavalo em mão, numa casa mui conhecida por ser o homem mui macho e ela uma mulherinha. Deixou o cavalo dentro e, vingada a honra masculina, saia ao caminho para dar conta ao séquito do seu triunfo, quando se ouviram uns berros: "Esperem, esperem!". Era o bravo labrego, que queria perguntar se seria possível trocar o cavalo por uma vaca. Foi assim como aquele rei decidirá ficar solteiro para sempre.

***

Este formoso conto popular, compilado por Carré Alvarellos (1), é uma das melhores mostras culturais que temos da matrilinealidade na Galiza. Mas uma sociedade matrilineal não é uma sociedade matriarcal –confussão que gerou no seu dia uma sorte de turismo etnográfico à nossa costa-, a qual é, sobretudo, um mito antropológico. Mito que, aliás, na Galiza funcionou como um ambivalente tropo colonial, como explica Helena Miguélez-Carballeira (2). A chamada matrilineal galega caracterizou-se porque a descendência, sucessão e herdança, era matrilineal, e a residencia matriuxorilocal; isto é, num caso típico a mãe melhora uma das filhas –generalmente a mais nova-, quem "casará na casa" que, à sua vez, intentará deixar em herdança a uma filha sua. Sem ser um matriarcado, é certo que onde se deu esta forma de herdança a situação das mulheres foi muito melhor que nas zonas de patrilinhagem, produzindo fenómenos culturais mui interessantes mas pouco conhecidos com rigor.

O primeiro em estudar seriamente a matrilinealidade galega foi o antropólogo Carmelo Lisón Tolosana (3), embora, a diferença de quando escreveu sobre as zonas de patrilinealidade ou partilhas igualitárias, cuidou-se muito de não dar os nomes dos lugares estudados, tal e como se os protegesse de algum estigma patriarcal. Apenas situa vagamente uma anónima comarca costeira da província da Corunha, além de outros pontos mais pequenos dispersos por todo o litoral –e também no interior-, onde se praticava esta forma de herdança. Por desgraça o material etnográfico é escasso, mas suficiente para imaginar a influência cultural da matrilinealidade; na paróquia que cita Lisón Tolosana não existe a crença de que ver uma mulher ao sair de manhã da casa seja sinal de mal agoiro, e embora o patrão paroquial seja um santo, a festa faziam-na na honra da matriarcal Virgem do Leite. A ideologia matrilineal expressa-se em ditos ("para a casa sempre melhor uma filha que uma nora") e canções ("Os filhos da minha filha/ todos meus netinhos são;/ os filhos da minha nora/ quiçá si, ou quiçá não") que sublinham este sistema como a mais bom para assegurar uma descendência legítima.

Para o antropólogo aragonés "esta forma hereditária é consequência da emigração, que começou a atingir volumen na segunda metade do século passado e primeiros deste (o XX) /...). Em algumas comarcas pode ver-se o processo de mudança da patrilinealidade à matrilinealidade em operação" (4). Por causa de ser tão (relativamente) recenté este sistema, as suas normas "não cristalizaram tão rígidamente, são circunstanciais". Ainda, ao serem as áreas matrilineais pequenas, dispersas e rodeadas de outras paróquias não matrilineais, não puderam estabilizar uns habitus próprios. Isto aprecia-se especialmente no caso dos homems: chegados de zonas não matrilineais, e com espaços de socialização masculinos com gente de áreas igualmente não matrilineais, difícilmente podiam viver nesse sistema naturalizando-o. Lisón Tolosana dá o exemplo dum sogro quem, estando ausente as mulheres da casa, reprende o seu genro por deixar-se dominar polas mulheres da casa e fazer tarefas impróprias dos homens (5).

A ausencia de homens –emigrandos ou embarcados- é coberta por segundões do interior, deserdados do sistema patrilineal que escolhem casar matrilocalmente por quanto apenas podem aspirar tardíamente a receber a legítima. Casam sem achegar nada mais que o seu trabalho e a garantia de que a manda matrilineal se reproduza legítimamente. Neste último sentido, a matrilinealidade dá numa sexualidade meramente reprodutiva, e a sogra mesmo pode chegar a prohibir que o casal durma junto: se o sexo reforça o vínculo herdeira-esposo, a relação piar da matrilinealidade, a mãe-filha, poder-se-ia debilitar. Assim, às vezes incitava-se o genro a emigrar uma vez que lograram descendência.

O homem ocupava estruturalmente um lugar completamente subordinado, condenado a uma minoria de idade permanente. Só nisto tem razão Lisón Tolosana ao descrever a sua situação como a inversa à que se dá nas relações patrilineais, mas o seu estado continua a ser muito melhor que o da sua homóloga patrilineal: a mulher pobre que casa patrilocalmente. Nesta possição, tão bem estadada na antropologia galega, a mulher suporta todas as responsabilidades da casa sem receber nenhum reconhecimento: quase como uma criada, está às ordens de sogra e cunhadas, sem poder verbalizar jamais essas tensões –fazê-lo seria pôr o esposo contra a sua mãe-. Estas mulheres foram históricamente as vítimas prediletas de meigalhos e endemoniamentos, expressão somatizada e mística da sua posição insuportável (6). No caso dos homens da matrilinhagem, embora digam que "não tinhamos um peso e a soghra não soltava nada (...). Eu tinha que roubar-lhe ovo pa tomar as taças (7)", ainda tinham esses espaços de relaxação permitidos, e seguiam libertados do cuidado dos filhos. De facto, quando a situação era difícil restava-lhe a emigração e outras saídas que não se permitiriam à mulher da patrilinhagem.

Quatro décadas após a investigação etnográfica de Lisón Tolosana outro antropólogo, Enrique Alonso Población, estudou –agora já sem secretismos- uma zona matrilineal em Xénero, parentesco e traballo. Un estudo antropolóxico no Concello de Laxe. Visitando as paróquias labregas de Lage encontrou-se com fenómenos tão chamativos noutras zonas como que as mulheres velhas vaiam à taberna. Numa entrevista uma melhorada –chamada patriciada ou patruciada-explicava assim o facto de que herdara ela:

"¿Por qué? ¿Por qué quedei? Porque era traballadora, non porque eu o digha. ¿Entendes? Porque eu de doce anos, todo o máis que tiña trece anos, cando casaron eses dous meus irmáns, e había un arado de ferro (...). E meu pai, que Dios lle perdone, non lle levaba idea andar, porque antiguamente labraban o arado a paus e inda non sabía, fasían todo a man. E despós viñeron saíndo os arados de ferro, os arados de pau, os arados de ala; o demonio. E meu pai, Dios lle perdone, non levaba idea. E eu agharreime ao arado de rodas. O de rodas e a todos (...). Os apretechos todos de labranza eu xa me fixen cargo de todos eles (8)".
Uma outra informante conta o seu caso, exemplo da antes citada estratégia de enviar o 'zangão' à emigração uma vez conseguida a descendência:

"E foi así o meu pensamiento, que o ordenara eu (...). Díxome: "¿Pero estórboche na casa logho?". E díxenlle eu: "Mira. Non é que me estorbes na casa. É que nosos pais non duran siempre". O meu santito traballaba sempre. "Nosos pais estamos moi ben mentres que eles viven, pero que eles morren, has quererlles comprar a herencia aos irmáns de fora" (...)". Traballo non che falta. Se non se che da ben e queres volver volves, eu non che mando. Se non se che da ben, ves outra ves por aí abaixo, tranquilamente. Meu homiño, que non pasa nada". Dinlle ánimo e tal así, e entonces foi. De tan buena sorte, que tuvo tanta sorte, que chegou alá..." (9).

NOTAS:

1. Carré Alvarellos, L. "Contos populares da Galiza", Revista de Etnografía, Vol. III, t. 2. Porto, 1964, pp. 456-457, conto nº 39. Há versões locais.
2. Miguélez-Carballeira, H. Galiza, um povo sentimental? Santiago, Através, 2014.
3. Lisón Tolosana, C. "La manda matrilineal", Antropología cultural de Galicia. Madrid, Siglo XXI, 1971, cap. VIII.
4. Lisón Tolosana, C. Perfiles simbólico-morales de la cultura gallega, Madrid, Akal, 2004 (1974), p. 198 n. 6.
5. Lisón Tolosana, C. "La manda matrilineal", op. cit.
6. Gondar, M. e E. González González. Espiritados. Ensaios de etnopsiquiatría galega. Santiago, Laiovento, 2000.
7. Alonso Población, E. Xénero, parentesco e traballo. Un estudo antropolóxico no Concello de Laxe. Vigo, Xerais, 2008, p. 64.
8. Ibidem, p. 61.
9. Ibidem, p. 76.


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