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030413 real academia galega 2Galiza - PGL - [Xoán Carlos Lagares] Chove no Rio. Da minha mesa junto à janela observo com melancolia a polêmica estéril em torno da Real Academia Galega. A tela do computador alagada pelo mar de fundo da cultura do país. Por trás dos vidros, gotinhas de água desenham pequenos círculos concêntricos nas poças da praça, nas folhas das árvores. O verde intenso dos chapéus-de-sol da minha rua invade a sala. Essas árvores de folhas grandes e copas frondosas protegem as calçadas do sol e da chuva, filtram a luz poderosa do verão tropical e barram o vento incontrolável dos temporais. Não há muitas coisas nesta vida que tenham tanta serventia. Como dizia Castelao, o animador de sonhos, o dia em que saibamos o que vale uma árvore, aquele dia não teremos necessidade de emigrar.


Para que serve uma Academia? Não saberia dizer exatamente. A RAG nasceu com o objetivo de elaborar uma gramática e um dicionário da língua galega. Demorou quase um século para publicar o seu dicionário monolíngue em galego. Pelos vistos, a instituição, criada nos moldes do academicismo mais tradicional, resolveu dedicar-se ao longo da sua história a outras coisas. É uma pena que nesse ponto os galegos não tenhamos imitado o catalanismo linguístico, como fizemos em tantos outros casos, pois ele soube fugir desse modelo beletrista para deixar o trabalho de planejamento de corpus nas mãos de instituições criadas exclusivamente para isso e não destinadas a afagar o ego de escritores, historiadores e eruditos locais. Tentando entender alguma coisa do que está acontecendo na rua Tabernas, pesquisei na internet, encontrei e ouvi a famosa entrevista a Ferrín, nosso grande escritor, na Radio Galega. A confusa explicação que ele deu ao entrevistador sobre a função da Academia Galega pareceu-me ainda mais constrangedora do que o silêncio em torno do suposto e nunca bem explicado nepotismo acadêmico.

Há muitas coisas curiosas e difíceis de entender na história cultural do nosso país. Mesmo quem critica os (des)caminhos institucionais da cultura galega “oficial”, com os olhos postos na lusofonia, não acha nada melhor para fazer que criar uma outra Academia. Com os mesmos (des)propósitos, as mesmíssimas práticas e rituais tão fin de siècle, o mesmo discurso purista. Pretender entrar com essas vestes na lusofonia, onde não existem e nunca existiram academias da língua, é a mais requintada e irônica prova de aculturação. Nada mais espanhol do que uma academia da língua. Na Espanha, a Academia é em relação à política linguística, o mesmo que as touradas em relação à cultura: uma simbólica instituição patriótica. Ao insistirmos em imitar esse modelo, estamos oferecendo ao mundo o nosso rosto minorizado, independentemente do nome que queiramos dar à nossa língua.

É claro que em Portugal e no Brasil existem academias científicas e literárias, com funções igualmente pouco definidas, tão machistas e tradicionalistas quanto as espanholas do centro e da periferia. Alguns desses acadêmicos, fardados como mariscais em suas reuniões de gala, também admiram o modelo padronizador da língua espanhola, tão contestado, por outro lado, ao longo do próprio mundo hispânico. O seu centralismo, a sua pretensão totalizadora de controle da diversidade, o seu autoritarismo normativo, que se expressa na ideologia do pan-hispanismo… Dizia Woody Allen que quando ouvia Wagner sentia uma vontade irrefreável de invadir Polônia; eu, quando ouço falar em pan-hispanismo, sinto é vontade de sair correndo (o problema é que o pan-hispanismo me persegue, não é paranoia, até mesmo no Brasil, onde sou professor de língua espanhola, com suas políticas impositivas e desrespeitosas com a diversidade).

A experiência de viver há mais de dez anos no Brasil, e de acompanhar a produção linguística da universidade brasileira, fez com que eu descobrisse que há, entre o céu e a terra, mais línguas portuguesas do que sonhava minha vã filosofia. As polêmicas e dinâmicas normativas no Brasil têm causas, modos e propostas próprias. O pensamento sobre norma desenvolveu na universidade brasileira reflexões originais, tentando dar respostas razoáveis aos desafios que impõe a realidade. Há dois anos contribuí modestamente, desde o Núcleo de Estudos Galegos da Universidade Federal Fluminense, com esse pensamento, organizando um ciclo de palestras e depois um livro intitulado Políticas da norma e conflitos linguísticos, em colaboração com Marcos Bagno.

Há mais ou menos uma década que linguistas vêm escrevendo gramáticas descritivas do português do Brasil, legitimando uma necessária flexibilização do padrão para incluir nele a norma culta brasileira, isto é, as variedades linguísticas faladas e escritas pelos brasileiros com maior nível de letramento. A Academia Brasileira de Letras (ABL), porém, nunca fez, nem tem intenção de fazer, uma gramática da língua. Embora alguns de seus membros assinem, a título individual, que é como se constrói o padrão na “lusofonia”, instrumentos linguísticos. Ao mesmo tempo, há quase vinte anos que os documentos que regem a educação no país estimulam uma educação linguística que acolha a diversidade do português brasileiro, que a reconheça e explique, como uma forma de lutar contra o preconceito linguístico arraigado na sociedade. Nesse panorama, a ABL trabalha contra, defendendo a deseducação no que diz respeito à compreensão dos fenômenos de linguagem e fomentando a discriminação e a insegurança linguística entre os falantes.

Entrar na lusofonia (o que significaria, re-al-men-te, isso?) da mão das Academias é, do meu ponto de vista, apenas uma ilusão. Por uma parte, pretende-se criar entre os galegos, nas atuais condições de hegemonia do espanhol na Galiza, uma nova fidelidade linguística em relação a um modelo de português indefinido, porque não existe nada parecido a um pan-lusitanismo, isto é, um projeto internacional de construção de norma (ortografia não é tudo na vida). Por outra, acredita-se num modo de organização de área idiomática caduco, que o espanhol manteve a duras penas com um grande investimento econômico e baseado numa tradição secular (sempre contestada, insisto) de autoridade acadêmica.

Sempre pensei que tinha muita coisa errada no modo de institucionalização da língua galega em torno do regime autonômico. E não falo agora de ortografia. Ou falo de ortografia também, mas não só. Porque um dos maiores contrassensos tem sido precisamente (como negar isso?) a identificação absurda entre língua e ortografia, que costumam fazer gregos e troianos. Mais grave, é claro, quando essa identificação serve para excluir do circuito cultural autonômico qualquer texto escrito em grafia portuguesa, com o argumento de que aquilo não seria “galego”. Mas o maior erro nestes anos foi, para mim, a identificação entre língua e norma, a rígida e intolerante política normativa, que até mesmo se permitiu reescrever nossos clássicos literários de anteontem, aquele purismo de uns e de outros, tão favorável à criação de tribos e de igrejinhas.

Quando terminei a licenciatura, trabalhei para a Dirección Xeral de Política Linguística, ministrando aqueles cursos para funcionários que eram tão bem pagos e tão mal distribuídos pelo cacique local entre os professores-bolsistas. Também dei aula, ocasionalmente, em cursos preparatórios para concursos públicos. As provas de língua galega nesses concursos, de múltipla escolha, cheias de pegadinhas sobre questiúnculas normativas inventadas na semana anterior, certamente não contribuiram para uma adequada educação linguística, nem para criar adesão à “causa da língua”. As circunstâncias políticas, com a hegemonia do PP (antes AP), nunca foram favoráveis e, devemos reconhecê-lo, a pobre cultura linguística do país, inclusive entre aqueles que nos formamos nas faculdades de “Filologia” (com essa denominação arcaica que ninguém sabe o que hoje quer dizer), não ajudou a mudar as coisas significativamente.

O debate normativo, fogueira de vaidades e espaço propício para alucinações coletivas, levou-nos a um beco sem saída. Para mim, que vejo as coisas na distância, comodamente instalado no português, a questão da língua não é já apenas uma questão de norma. Isso que conhecemos como Português é um apoio incontestável para a nossa língua, que independe, em boa medida, do modo que empreguemos para escrevê-la. Há anos defendo uma cultura reintegracionista que possibilite aos galegos transitarmos no espaço lusófono, comunicando-nos com as mais diversas variedades “portugalegas”. As coisas seriam, talvez, mais simples se deixássemos de discutir sobre essências, abandonássemos todo vitimismo em relação ao espanhol e ao português (Espanha nos castiga, Portugal nos ignora), e aproveitássemos as oportunidades que a nossa pertença ao tronco histórico portugalego nos oferece.

Nesse panorama, a existência do português do Brasil, com seus modos de falar, e as pretensões de construção de uma política normativa própria, num quadro de efetivo pluricentrismo, se torna um importante aliado para o galego. A lusofonia que daí resultaria, nada teria a ver com o saudosismo imperialista português. Poderia ser apenas, como defende Carlos Alberto Faraco, um espaço de comunicação diverso, sem pretensões de centralização normativa, afastado de qualquer noção de purismo linguístico. Isso não enfraquece a língua, pois unidade não é uniformidade. Manter abertos os canais de comunicação entre as diversas variedades é garantia para que possamos reconhecer-nos, e reconhecer a nossa língua, na diferença. Para mim hoje é já evidente que só desse reconhecimento poderão surgir ideias não desvairadas de “unidade linguística”.

Sendo totalmente sincero, não saberia dizer quê papel poderiam jogar as atuais instituições galegas num espaço de comunicação lusófono. Nem é uma questão que me preocupe muito. Seria suficiente, simplesmente, se não atrapalhassem as iniciativas que surgem na sociedade, nos setores que não têm medo de ensaiar novos rumos, caminhando contra o vento. Quem sabe algum dia possam dar-nos, ao menos, boa sombra, como as árvores generosas do meu bairro… ao invés de nos taparem a luz.


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