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311012 gilvicente3Galiza - PGL - [Carlos Quiroga] Em junho houve teatro lusófono em Compostela através da brasileira Companhia do Feijão.


Nesta sexta-feira dia 2, e no sábado 3 de novembro, o Salão Teatro de Compostela oferece às 20:30 h a oportunidade de ver no palco da Rua Nova um clássico sempre moderno. Será a Companhia de Teatro de Braga que represente O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, uma peça com quase cinco séculos que no entanto continua extraordinariamente viva.

Em junho tivemos uma ainda mais rara passagem brasileira com a fugaz encenação da Companhia do Feijão em representação única/magnífica que não correu mal de público. Cinco meses depois talvez poderemos instigar com maior entusiasmo os programadores para que o teatro em português na Galiza não seja exceção.

Na passagem de novembro a dezembro decorrerá em Santiago o III Encontro Internacional sobre Políticas de Intercâmbio no âmbito das artes cénicas, na sequência dos realizados em Coimbra (2009) e Teresina (Piauí – Brasil, 2010), agora organizado pela Conselharia de Cultura e Educação da Junta de Galiza e a Cena Lusófona. Talvez as políticas e os projetos de intercâmbio cultural em desenvolvimento no espaço da Língua Portuguesa mudem para melhor na parte que nos cabe. Para que nos caiba mais. Até que isso aconteça vamos aproveitar o presente. E na altura em que se cumprem os 450 anos da primeira edição da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (Lisboa, 12 de Setembro de 1562), temos ocasião de celebrar com a Companhia a Companhia bracarense que pega num possibilista texto daqueles para falar ao tempo presente com humor. Trata-se da primeira parte da trilogia das Barcas, com um julgamento de almas em que uma série de candidatos a subir no porte do Diabo ultrapassam os pretendentes ao do Anjo.

Referente clássico

Se "auto" era uma designação genérica e medieval para uma pequena representação teatral com inicial caráter religioso, depois tornou-se popular para distração do povo nas mãos de Gil Vicente, que introduziu esse tipo de teatro em Portugal. O Auto da Barca do Inferno (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e com forte apelo moral. O cenário habitual para a dramaturgia deste texto vicentino propõe uma espécie de porto onde se encontrem duas barcas, uma com destino ao inferno comandada pelo demo, outra com destino ao paraíso comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardando os mortos e as suas almas, decidindo-se aí o bilhete que lhes cabe.

Pesando almas

O primeiro candidato é um fidalgo que representa a nobreza, condenado ao inferno por pecados de tirania e luxúria. O diabo ordena ao tal que embarque mas este arrogante julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-se frustrado para a barca do inferno, mas tenta convencer o diabo a deixá-lo rever a amada, pois esta "sente muito" a sua falta. O diabo abate o raciocínio afirmando que ela o enganava. No prestamista/banqueiro que chega depois, logicamente também condenado ao inferno, já nem vamos parar, mas uma palavra sobre o terceiro: o parvo, tipo humilde que só por isso acaba por entrar na barca do céu. Não a alma seguinte, um sapateiro com todos os seus instrumentos de trabalho que durante toda a sua vida enganou muitas pessoas, nem a do frade que entra de quinto, amante incluída. Nem Brísida Vaz, feiticeira e alcoviteira, que prostituiu meninas virgens e cujo maior bem, afirma o demo, são "seiscentos virgos postiços", tendo portanto enganado seiscentos homens dizendo que as moças eram donzelas. Do judeu nem se diga, chega acompanhado por um bode e é recusado até pelo diabo a quem tenta subornar, e finalmente vai só a reboque da barca (excesso com marca do contexto primitivo da peça, quando muitos judeus foram expulsos de Portugal e os que ficaram tiveram que se converter em vigiados cristãos novos). O corregedor, o procurador, os manipuladores da justiça que não desconhecem familiaridades com fulanas como Brísida, o enforcado que acredita ter perdão só por ter sido julgado, e por fim quatro cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo, completam a lista vicentina.

Maniqueísmo prático

Enfim, comparecem personagens com objetos terrenos que representam um aferro à vida, e são o Mal; assistem pela contra personagens que sendo cristãos e sendo puros são o Bem. Estes vão ao céu, aqueles rumam ao inferno. Esquema ironizado aparentemente simples. Mas também e realmente funcional. Aquilo que em origem foi escrito em heptassílabos e se dividiu apenas num ato, a enlaçar fluidamente várias cenas, admite montagem pós-moderna aberta sem que se diga distorção do modelo. A linguagem era já coloquial e servia para marcar perfil de personagem e lugar que ocupava na sociedade, cuja estrutura inteira resulta assim atingida pela sátira, um processamento de tocar nas feridas de há quinhentos anos que em essência pode também ser implacável para tocar nas do tempo presente. Como parvos e funcionários, e cavaleiros e financeiros prestamistas, e até alcoviteiras e usurários e fidalgos etc. houve e haverá, retratar o mundo em volta com este esquema e a pretexto de um Juízo Final sempre deu e dará jogo ágil, mais plausível/funcional cenicamente do que a primeira vista poderia esperar-se –como o cinema americano costuma apocalíptica e regularmente experimentar. A Companhia de Braga provará ao vivo mais uma vez a modernidade e contemporaneidade desta peça tão antiga que vai de encontro a esse mesmo esquema, contando com a execução do seu encenador Rui Madeira: "Sinto, nesta volta a Gil Vicente, uma força que emana do jogo de palavras, da teatralidade que subjaz ao corpo dos atores. Uma energia que puxa para a liberdade de criação, liberta pela palavra e pelo corpo. Há uma teatralidade na Palavra Vicentina. E isso implica um ritmo próprio, um tempo único e um espaço (digo aqui dimensão do mesmo, distância entre elementos cénicos fundamentais, entre os atores). E a procura criativa sobre esta conjugação de Unidades gera, em si mesmo, um léxico que é preciso descobrir em Gil Vicente."

Elenco

Para além do encenador Rui Madeira, a Companhia de Braga está constituída pelos atores Alexandre Sá, André Laires, Carlos Feio, Giovana Sgarbi, Jaime Soares, Rogério Boane e Solange Sá. Os figurinos são de Sílvia Alves. Das Luzes ocupa-se Fred Rompante e do Som o Pedro Pinto. A Fotografia correu por conta de Manuel Correia e Paulo Nogueira, o Grafismo de Carlos Sampaio. Entre todos darão vida nova a personagens e situações hilariantes que levam quinhentos anos garantindo resultados na plateia. Risos, sim, mas não só. Porque por trás do riso andam as veras e nem tudo é alegoria –todos sabemos de pecados, todos sabemos ou suspeitamos de infernos e paraísos. Vamos ver nesta ponte como o pessoal de Braga nos explica o assunto.


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