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Galiza - PGL - e a moza –Santa Galiza-,
cantan a dúo, ben xuntos,
na bisbarra brigantina (…)”

Antón Zapata, Romeiría (1)

 

 


Se investigássemos as pintadas do independentismo ‘espontâneo’ na Galiza, mui probavelmente concluiríamos que “Puta Espanha!” foi a legenda mais popular; mesmo Suso Vaamonde foi condenado a prisão por cantá-la na conhecida cantiga. Em Galiza, um povo sentimental? Género, política e cultura no imaginário galego, Helena Miguélez-Carballeira descobre com minúcia os sedimentos, pregues e roturas desta lógica patriarcal da construção nacional através dos textos literários. Na linha de pensadoras como Mira Yuval-Davis, a investigadora galega reconsidera a importância da dominação masculina: não como um apéndice dos conflitos nacionais, senão como a própria arena da desputa. Uma focagem que revolucionará a percepção do nosso imaginário nacional e as suas lutas.

Comunitarismo sexual

A lógica sexual  do honor pola qual as mulheres se tornam as depositárias da moral do grupo, é mui anterior à generalização do nacionalismo como forma de imaginar a comunidade. Na Galiza tradicional, estruturada nos segmentos identitários casa-aldeia-paróquia, as mulheres também carregavam com o lastre de representarem a eticidade de cada segmento. No cancioneiro do patriotismo paroquial nunca falta a exaltação da beleza recatada das moças e da virilidade dos homens: “A Luanha tem a zona/ de vinos e aguardentes,/ de mulheres bonitas/ e de homens bem quentes”.  Tal e como se ensinava no jogo de capar a boina (2), o prestígio acumulava-se defendendo a honra sexual das moças do grupo e “mancilhando” a das moças do antogonista.

Num velho manual de etnografia propunha-se o conceito de “comunismo sexual” (3), mas, polo menos para o caso galego, seguramente seja mais preciso falar duma sorte de “comunitarismo sexual patriarcal”; uma série de instituições (como o pago do piso, os sorteios de parelhas em Aninovo, Entruido ou Maios, as remudas nos bailes, etc.) tentavam gerir as mulheres da aldeia ou paróquia como se fossem um bem comunal dos moços. Os paralelismos entre as sanções comunitárias ao gado alheio que se metia nos pastos comunais, e as que se impunham aos jovens forasteiros que vinham mocear à paróquia, são reveladoras, mas também o ideal viril do grupo que encarnava o boi da aldeia, tão bem descrita por Miguel Torga (4).

Vicente Risco e outros têm sinalado como as “sociedades dos moços” pretendiam governar o comportamento das moças da paróquia. Estas sociedades remedavam o concelho aberto dos adultos, reunindo-se nos mesmos lugares (na encruzilhada, na árvore do centro, no forno comunal…) e dando aos seus líderes os nomes das autoridades paroquiais (mordomo, vigário…) (5). As pelejas nas festas contra os moços de outras paróquias, raramente detonadas por ciúmes románticos individuais, e quase sempre por supostas desobediências a umas normas consuetudinárias de acesso às moças no baile, eram  – junto com as chegas de bois (6) – o clímax deste comunitarismo sexual de tipo patriarcal (7). Nestas competições de prestígio cada paróquia defendia a honra das suas mulheres e atacava a das de outras: “As rapazas de Merelhe/ todas juntas numa eira/ umas cantam, outras bailam/ outras andam à janeira”. Uma lógica na construção identitária que Miguélez-Carballeira identifica no conflito entre os projetos nacionais galego e espanhol, continuidade que parecia apontar o poeta arredista Antón Zapata nos versos do início.

Prostituição hospitalária

Quando a sexualidade das mulheres se torna o campo de batalha das disputas identitárias, é claro que, ganhe quem ganhar, sempre perderá a emancipação feminina. Helena Miguélez-Carballeira sinala, como exemplo desta colisão de interesses entre os discursos de género e o nacional-patriarcal, a reação irada que provocou um artigo de Rosalia de Castro sobre a prostituição hospitalária na Galiza litoral, publicado em abril de 1881 no suplemento literário do Los Lunes del Imparcial. Esta prática, amiúde estudada nos manuais de antropologia através da sociedade invit  – e divulgada polo filme de Nicholas Ray, Os Dentes do Diabo (1960) -, consistia no caso galego em que as famílias que hospedavam marinheiros que levavam muito tempo embarcados, permitissem que uma mulher da casa se deitasse com o hóspede. O que Rosalia apresentava como uma mostra do humanitarismo das mulheres do povo marinheiro, foi recebido como um aldraje à honra sexual do país. Perante tal enxurrada de ataques, Rosalia de Castro decidiu deixar de escrever em galego e sobre temas galegos, para não “volver a escandalizar a mis paisanos”.

Pola contra, a sociedade El Folklore Gallego, vinculado à anti-regionalista Emilia Pardo-Bazán, não tivo qualquer problema em 1885 à hora de incluir no seu Cuestionario del Folk-Lore-Gallego –redigido por Cándido Salinas e Antonio Francisco de la Iglesia- uma questão, a número 269, sobre o polémico costume: “Prostitución: ¿Existe la prostitución hospitalaria de que habló Rosalía de Castro, ó sea la costumbre de que al regresar el marino de un largo viaje se le ofrezca la hija ó hermana del que le hospeda?”. A etnografia galeguista, porém, dedicou-lhe pouca ou nenhuma atenção a esta prática sexual, que estava em gritante contradição com um discurso nacional masculinizado que defendia a honra da Terra Mãe (8).

Emilia Pardo Bazán, por sua parte, seria alvo de ataques em chave nacional-patriarcal, algum deles planeado por Manuel Lugris Freire, quem Helena Miguélez sinala como um dos guieirosrepresentados de forma hipermasculina em A Nosa Terra. O seu filho, Urbano Lugris, recordava como sendo neno o seu pai o obrigara a participar numa espécie de guerrilha da comunicação. Aguardando à noite, o seu pai fazia-o baixar até os jardins de Méndez Núñez onde, ao pé do monumento à escritora, tinha que deixar o penico que levara, cheio de preservativos (9). Era a época em que se escrevia sobre a ativa vida sexual da escritora,  e o dirigente nacionalista aproveitava a ocasião para vingar-se dos estereótipos coloniais sobre as promíscuas camponesas galegas em que tanto se prodigara Dona Emilia.

Décadas depois, no longínquo mundo académico dos EUA, Alberto Machado da Rosa historiava uma vida sexual da Rosalia de Castro que desbordava a alcova marital de Murguia, provocando um pequeno terremoto desta beira do Atlântico. Fermín Bouza-Brey saia rapidamente ao passo, com um voluminoso reajuste hagiográfico da poeta –reconstrução de hímen incluído-, no qual se concluía que o amor de Rosalia com outros homens seria pouco menos que uma impossibilidade conceitual.

Por um novo imaginário

A influencia das teorias pós-coloniais foi fulcral no pensamento galego dos últimos anos. Eis, por exemplo, as estratégias narrativas que ensaia Ernesto Vásquez Souza ao jeito de Homi Bhabha; ou a noção de “campesinismo” desenvolta por Antom Santos em Terra a Nosa! Discurso e Identidade Agrária na Galiza ‘Moderna’ (1875-1936) que, inspirada em Edward W. Said, abre as portas a investigar um “galleguismo” entendido como um orientalismo. No nível mais estritamente político, a influencia de Franz Fanon foi mui importante num independentismo galego entregado à demolição dos estereótipos coloniais do povo galego fatalista, pacificado, resignado ou suicida, tantas vezes presentes no próprio discurso nacionalista. Lamentavelmente, a agudeza na crítica a esse imaginário colonial redundou numas respostas na mesma lógica sexual; apenas há que ver as representações produzidas para detectar imagens “viris” por toda a parte (10). E é aí, para além do seu evidente valor académico, onde o giro feminista de Helena Miguélez-Carballeira resulta decisivo, se o lemos como um chamamento a construir um novo imaginário emancipatório nacional também em termos de género. Este é um libro, em definitiva, que vai provocar uma necessária comoção no movimento galego.

MIGUÉLEZ-CARBALLEIRA, Helena. Galiza, um povo sentimental? Género, política e cultural no imaginário nacional galego, Santiago de Compostela, Através Editora, 2014.

NOTAS:

  1. Antón Zapata, “Romeiría”, in: Xosé Filgueira Valverde, Os poetas galegos (1936). Antoloxía consultada, Ponte Vedra, Museo de Pontevedra, 2008, p. 160.
  2. “A qochra e a boina: jogar a “ser homem”
  3. Nieves e Luis de Hoyos, Manual de folklore. La Vida Popular Tradicional, Madrid, Itsmo, 1947.
  4. Há referências constantes em vários tomos do seu Diário.
  5. Vicente Risco, “Etnografía. Cultura espiritual”, in: R. Otero Pedrayo (dir.), Historia de Galiza, t. 1, Buenos Aires, Editorial Nós, 1962, pp. 531-532.
  6. Manuel Mandianes, Loureses, Vigo, Galaxia, 1984, p. 98.
  7. “Noites de moca e aturujo”
  8. A teoria de Miguélez-Carballeira obriga a reler as polémicas da etnografia galega quanto à sexualidade, pois permite entender silêncios e atitudes defensivas, especialmente na etnografia “clássica” da geração Nós.
  9. Antón Patiño, Urbano Lugrís. Viaje al corazón del oceáno, Vigo, Nigratrea, 2008, p. 119.
  10. No epílogo dum libro recentemente publicado sobre o nacionalismo galego de após-guerra, um dirigente político deixava alguns exemplos disto. Comenta a sua desilusão ao conhecer Ramón Piñeiro, pois esperava um “home rexo e pelexón”, mas topou-se com um “saúdo fláccido”. Piñeiro, aliás, “sempre aparecía de ganchete con Sabell. Entre os dous facían unha das parellas máis coñecidas da sociedade compostelá. Outra formábana as Marías (…)”. Para rematar, reivindica o papel do seu partido com uma brutal metáfora sexual: “Na recenté política galega río Miño só hai un. Guadianas, varios. Río que aparece e desaparece, tan veleidoso que os portugueses llo devolveron a España en canto pisou terra lusa para que fose morrer en Ayamonte, no mesmo país que o viu nacer. O da nacenza é un falar, pois parece ser o único río fillo de pai descoñecido. Ningún outro máis apropiado para saír do ventre da adúltera Castela, terra que se fartou de parir bastardos”.

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