Devia estar mexendo nas tojeiras de Santa Tegra quando se encontrou com um paisano, bom conhecedor do dito círculo. “Nele tinham os mouros as suas assembleias”, explicou-lhe ao senhorito de Ponte Vedra. A mentalidade camponesa percebia os círculos como símbolos da democracia concelhil, geometria das iguais e do comunal, tal como demonstra um abundante folclore da arqueologia.
Há uma história política da geometria social: conhecemos mais sobre a ideologia de um grupo pola sua distribuição espacial nos ajuntamentos do que polos seus ‘-ismos’. Na sociedade do concelho aberto o círculo é omnipresente: falava-se da ‘rolda’ para referir-se à vezeira, ao turno de participaçom nos trabalhos comunais, à ordem em que cada casa se encarregava do concelho, ao percurso que fazia o zelador para avisar das assembleias… A comunidade, organizada numa reciprocidade generalizada, via-se a si própria com um círculo; sem ângulos dominantes, sem ninguém mais perto do centro do que as demais. Com a sua descomposição passa-se do círculo às geometrias hierarquizadas: das danças e festas em corro, como um corpo coletivo, à individualização e unidirecionalidade do espetáculo; do Entrudo em que se punem as pessoas que não participam, aos desfiles de Carnaval com espetadores.
Mas o círculo democrático europeu já estava ferido; não por acaso os labregos ingleses percebiam os círculos de fungos não como assembleias, senão fairy circles –e fairy com o duplo significado de fada e ‘maricas’-; igualmente os castelhanos falam de corros de brujas. O círculo vinha marcado a lume e ferro polo brutal ataque ao comunitarismo pré-moderno que supujo a caça às bruxas. Com ela constrói-se imaginário do aquelarre, a demonização –literalmente- do círculo. Mas do aquelarre, escreve o historiador Carlo Ginzburg, “uma vez eliminados os mitos e adornos fantásticos, descobremos uma reunião de gente, acompanhada por danças e promiscuidade sexual”, isto é, uma festa labrega. Prova de que a bruxaria que perseguiam, o terrorismo da época, não era outra cousa que a autonomia comunitária face ao nascente capitalismo.
O ataque teve tanto sucesso que continua vivo na linguagem atual, e o imaginário do aquelarre aparece continuamente. As capas de vários jornais espanhóis falavam recentemente do “aquelarre de Durango”, em referência a uma conferência de imprensa de ex-presos políticos bascos que queriam mostrar a sua adesão ao processo de paz. Também se rastreja na literatura galega de Pardo Bazán a Noriega Varela, que cada vez que descrevem mais de duas mulheres juntas transformam-nas em bruxas. Em “banda organizada”.
Na Terra Ancha, 14 de setembro de 2014
para Patxi, meigo
P.S: De quando em quando saia-lhe o habitus camponês a Outeiro Pedraio, e punha-se a ver o mundo em chave comunitária, em círculo: no verão “falavam os patrons por riba das capias dos muros cando as pegas se amoream nos outeiros no seu concelho aberto pola castanheira”; e no relato O angaceiro das estradas são os mesmíssimos caminhos os que se reunem em concelho aberto.