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saude1Brasil - Rede Brasil Atual - [Gisele Brito e Rodrigo Gomes] Premissas estipuladas no Plano Diretor da cidade há 10 anos não são postas em prática. Priorização de atendimento ambulatorial diminui capacidade de tratamento preventivo


Um sistema baseado na doença e não no bem-estar e na prevenção. Assim pode ser definida a rede de atendimento à saúde em boa parte do Brasil. Em São Paulo, a afirmação pode ser comprovada em função de opção da prefeitura da capital de priorizar a criação e a ampliação de unidades de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), que só atendem pessoas doentes, em detrimento da rede de Unidades Básicas de Saúde (UBS), que cumpre o papel de fazer o atendimento preventivo e de rotina. As UBS são, também, a porta de entrada para atendimentos complexos e via obrigatória para obter a atenção de especialistas.

O Plano Diretor da Cidade, que completou 10 anos na última semana, previa uma série de diretrizes de saúde que buscavam o fortalecimento do SUS e a distribuição dos diferentes níveis de atendimento à saúde de maneira equânime pelo território da cidade. Uma década depois, pouco mudou para melhor e há verdadeiros "buracos".

O casal Luciene e Carlos Cazuza sintetiza bem essa situação. Há quase três anos, a costureira Luciene, de 39 anos, sabe que tem uma hérnia e que precisaria fazer uma cirurgia para corrigi-la. Exames preparatórios chegaram a ser feitos, mas, antes que os resultados ficassem prontos, ela descobriu que estava grávida. Em função disso, a cirurgia foi adiada. Um ano e quatro meses depois de o bebê nascer, ela ainda não conseguiu sequer marcar as consultas para realizar novos exames pré-operatórios e sabe que, quando conseguir, terá de se deslocar até outro bairro para que os exames sejam feitos, o que o casal classifica como "absurdo", já que resulta em gastos financeiros e em perda de tempo.

Além da empreitada de Luciene, o casal tenta marcar consultas para a filha caçula, que precisa de um diagnóstico para um problema dermatológico para poder continuar frequentando a creche. A mãe conta que já tentou marcar a consulta com o especialista cinco vezes, todas sem sucesso. "Até um ano é fácil conseguir marcar, depois é uma burocracia", relata.

Apesar da preocupação do casal em relação à saúde, as distorções no sistema fazem com que eles tenham de concentrar os esforços no que é mais urgente: a cirurgia de Luciene e o problema de pele da caçula. Os outros três filhos pré-adolescentes e Carlos acabam sendo penalizados. "Eu nem sei há quanto tempo os meninos não vão ao médico, pra te dizer a verdade. A gente tenta marcar e não consegue. Quando eles têm alguma coisa eu corro direto para o hospital", conta a mãe. "Esses dias mesmo eu achei que estava com um começo de úlcera e fui pro hospital. Fizeram uma bateria de exames e, graças a Deus, não era. Mas marcar eu nem tento. Sei que vou passar raiva", conta Carlos. Ele também tem consciência de que já deveria procurar atendimento para realizar exame de próstata, mas se sente desencorajado para tentar. "Se para os meus filhos está difícil, imagina para mim", diz.

De fato, o atendimento para os homens é ainda mais difícil nas UBSs, já que elas não contam com nenhum especialista dedicado ao gênero e quase sempre precisam ser encaminhados para unidades de especialidades.

Abertas a partir de 2004, as AMAs são, hoje, 120. Já o número de UBS passou de 380 para 441, um aumento de 61 unidades (16%). No entanto, a maioria destas unidades foi instalada em prédios onde já funcionavam UBS, diminuindo o espaço físico das unidades e também a capacidade física de atendimento, segundo o ex-coordenador do Conselho Municipal de Saúde de São Paulo, Frederico Soares de Lima. "Na maioria dos casos a UBS já existia e foi feita adequação do espaço eliminando setores importantes, como trabalho coletivo de assistentes sociais e psicólogos com grupos de DST/Aids, diabetes, hipertensão, para receber as AMAs. Em muito poucos casos as AMAs foram colocadas em prédios independentes ou novos", afirma.

No caso da AMA Jardim Mirna, por exemplo, a UBS de mesmo nome existe desde 1984 e mantém basicamente a mesma estrutura de quando foi inaugurada, mas hoje está dividida entre os dois serviços. O mesmo ocorre com a UBS/AMA-Especialidades Jardim Icaraí, que oferece os três serviços no mesmo espaço em que existia somente a UBS. Além dessa ocupação do espaço das UBS, as AMAs não mantêm prontuários das pessoas atendidas, o que impossibilita o acompanhamento desses pacientes.

O militante do Fórum Popular de Saúde Paulo Spina afirma que não se trata de negar a necessidade do pronto atendimento em casos de urgência, mas de priorizar a prevenção. "O pronto atendimento vai ter de existir sempre. Mas ele não pode ser a política principal. O foco principal tinha de ser o reforço da atenção básica que é feita na UBS e pela Estratégia Saúde da Família", aponta.

 

Inversão de prioridades

As AMAs são uma das principais bandeiras das gestões José Serra/Gilberto Kassab e têm avaliação positiva da maioria da população. É o caso do pedreiro João Batista, de 45 anos. Ele afirma que levaria muito tempo para conseguir atendimento na UBS Jardim Eliana, na região do Grajaú, mas a AMA resolve seu problema. "Estou com uma alergia no braço e quando passei no médico ele receitou um remédio que não resolveu, mas não posso esperar mais dois meses para outra consulta. No AMA eu fui hoje e já fui atendido", diz.

saude2No entanto, para Spina, o que parece uma vantagem pode significar uma inversão de prioridades. "A AMA não serve ao SUS, ela desestrutura o Sistema Único. Porque só recebe emergência, quando já há o problema, não tem foco em prevenção. Ou seja, é um atendimento que fica mais caro para o setor público. E não dá encaminhamento. Funciona muito bem para a dor de garganta. Tudo que deveria ser feito nas UBS foi paralisado. A estrutura que nós temos hoje é a mesma que tínhamos há oito anos. E precisamos contar ainda que muitos profissionais se aposentaram, que muitas unidades precisavam de reforma, o que não foi feito. E isso sucateou o sistema", afirma.

Apesar das alardeadas melhoras que a prefeitura afirma ter ocorrido nos últimos anos, os usuários entrevistados reclamam de problemas recorrentes há décadas. Dentre eles, os mais comuns ainda são a falta de especialistas, a demora no agendamento de consultas e exames e o número insuficiente de UBSs.

A demora na marcação de consultas é um dos problemas mais antigos do sistema de saúde. A dona de casa Cícera Maria dos Santos, de 52 anos, deixava a UBS

Parque Residencial Cocaia Independente, na zona sul, às 10h30 do dia 30 de agosto. Ela chegou às 7h. Finalmente com a consulta marcada, a dona de casa afirma que estava tentando agendar uma mamografia há quatro meses. O agendamento foi feito para quase um mês depois. "A gente sempre fica com medo de que o médico não apareça no dia agendado e eu entro de novo na luta para marcar consulta", diz Cícera.

Essa demora é acentuada pela número insuficiente de unidades de saúde na cidade. As diretrizes do SUS exigem como parâmetro para atendimento à população, em atenção básica, uma UBS com Estratégia Saúde da Família (ESF) para cada 12 mil habitantes ou uma UBS sem a Estratégia Saúde Família para cada 30 mil habitantes. Embora, em números absolutos, a proporção de unidades por habitantes seja razoável, cerca de 1 para cada 25 mil habitantes na cidade, existe uma distorção na sua distribuição.

Algumas regiões, como Capela do Socorro, na zona sul, que tem a ESF em 12 de suas 17 UBS, chegam a ter uma unidade para cada 35 mil habitantes, aproximadamente. De acordo com o Conselheiro Gestor Juarez Ribeiro, que atua no controle social — conforme as exigências do Plano Diretor — da UBS Parque Residencial Cocaia Independente, a unidade em que dona Cícera buscava atendimento atende a cerca de 70 mil pessoas.

Isso ocorre porque a unidade básica de saúde do Cantinho do Céu ainda não foi construída e a população deste bairro busca atendimento a dois quilômetros de distância, na UBS Parque Residencial Cocaia Independente. Toda a equipe do Cantinho do Céu foi contratada e trabalha nesta unidade há mais de um ano. A situação resulta em uma inusitada superlotação de profissionais que, no entanto, não ameniza as dificuldades enfrentadas pelos usuários do sistema público de saúde.

O Plano Diretor tem como uma de suas diretrizes a ampliação da rede física de atendimento para adequá-la à população e a ampliação do atendimento da Estratégia Saúde da Família. No entanto, as comunidades 19 e 20, na região da Cidade Dutra, relatam que não são visitadas por equipes da ESF e não são assistidas por qualquer UBS na região. Para conseguir atendimento, os moradores pedem comprovantes de residência de conhecidos que moram próximo das unidades.

A falta de cobertura dificulta ainda mais o tratamento da dona de casa Severina dos Ramos de Freitas, de 58 anos. Ela tem problemas vasculares e precisa cuidar do marido, que tem problemas emocionais. No entanto, os atendentes informam que o local onde ela mora não faz parte da área de atendimento das UBSs Jardim Clipper e República e ela acaba tendo de percorrer diversas unidades de saúde para conseguir atendimento. "Tem de ficar indo de um lado para o outro. E eu com essas varizes na perna. Eu fui ao médico em março e disseram que todo mês precisava fazer a avaliação de pressão. Sabe quando vou conseguir consulta? Em outubro", relata. "Eu comprei um aparelho para medir a pressão e quando dá alguma alteração eu vou direto para o hospital tomar um remédio".

Outras demandas de saúde da população paulista, prometidas no plano de metas da cidade de São Paulo 2009-2012, sequer saíram do papel. Compromissos de campanha do prefeito Gilberto Kassab, os hospitais de Parelheiros, Vila Maria e Brasilândia ainda estão em processo de licitação e, das 50 unidades de atendimento odontológico (AMA Sorriso) previstas, apenas quatro já têm ao menos imóvel definido para sua instalação.

O Hospital Geral do Grajaú é o único a atender aos distritos de Capela do Socorro e Parelheiros em casos de alta complexidade. Existem dois pronto socorros municipais na região, o Maria Antonieta e o Balneário São José. O primeiro foi dividido, como as UBS citadas, para receber a AMA Maria Antonieta. O segundo carece de médicos e de infraestrutura para atender à população da região.

Revoltados com a situação, ativistas ocuparam na madrugada do dia 8 de agosto um prédio abandonado na região da Capela do Socorro, no extremo sul de São Paulo, no qual deveria estar o hospital de Parelheiros. Além desta ocupação, foram realizados atos nos locais nos quais deveriam ter sido construídos os outros dois hospitais. Os manifestantes cumpriram simbolicamente a promessa de Kassab, definindo os locais de atendimentos e exames com placas feitas à mão e realizando uma festa de inauguração, com direito a fogos, discursos e corte de fita.

 

Saúde pública, administração privada


Todos os entrevistados para essa reportagem são usuários de UBSs cuja administração foi terceirizada pela prefeitura para Organizações Sociais de Saúde (OSS). Atualmente esse tipo de entidade administra a maioria das unidades de saúde em toda a cidade. Prefeitura e governo do estado argumentam que, dessa forma, conseguem diminuir a burocracia e reduzir os custos com compras e as contratações de profissionais, além de aumentar a eficiência do atendimento à população.

O tribunal de contas do município já levantou diversas irregularidades em pelo menos duas dessas OSS, a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e o Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci), que agora são investigadas pelo Ministério Público. Apesar de não terem fins lucrativos, organizações sociais que nada têm a ver com a área de saúde, como a Seconci, se prontificam a assumir "o pepino" da saúde pública. Provavelmente porque não precisam fazer nenhum investimento, já que todo o dinheiro utilizado por elas vem integralmente do Estado.

Dessa forma, apesar de o investimento em saúde na cidade de São Paulo ter aumentado nos últimos anos, a maioria dos recursos é repassado às OSS para custeio de todas as suas atividades.

O promotor público Artur Pinto Filho acredita que a adoção da política de terceirização da administração da saúde tem fundo ideológico. "As OSS vêm dentro da ideia neoliberal de Estado mínimo, de que a iniciativa privada era muito melhor em tudo", diz. Pinto Filho concorda que é preciso melhorar a gestão e o atendimento à saúde, mas isso não pode levar à desconstrução do SUS e dos princípios de gestão pública. "Comprar sem licitação não é vantagem. As OSS pagam salários até quatro vezes maiores do que se paga a um funcionário público de carreira, não aplicam um centavo e custam em média 40% mais caro ao Estado", complementa.

Para Paulo Spina, do Fórum Popular de Saúde de São Paulo, a instituição das Organizações Sociais de Saúde fere os princípios do sistema único de saúde. "O SUS em São Paulo está fragmentado, são mais de 30 organizações gerindo de formas distintas, pois existem OSS ligadas a universidades, igrejas e até a construção civil". Além disso, para Spina, é falsa a percepção de que o atendimento e as condições dos funcionários melhorou. "Para justificar a instituição delas, o Município sucateou o sistema e o trabalhador, que há muitos anos não recebe aumento, promoções, etc."


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