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busuBrasil - Tarifa Zero - [Daniel Guimarães] O chocante texto de Hildegard Angel sugerindo, como medida para reduzir a violência na cidade do Rio de Janeiro, a redução dos horários de ônibus nas linhas que ligam a Zona Norte às praias da Zona Sul revela um dos sentidos fundamentais da existência da tarifa do transporte público.


Penso que o deslocamento dos trabalhadores e trabalhadoras e de consumidores e consumidoras para os locais de produção de riqueza é a face pré-consciente, supostamente razoável, em uma sociedade que não condena essa violência disfarçada. Digo pré-consciente pois o discurso nunca é claro dessa forma, sugere-se que já hoje o transporte coletivo tem como finalidade garantir o direito de ir e vir da população. Uma verdade parcial, para ser otimista, pois a existência da tarifa e a baixa oferta de transporte em bairros distantes e em horários "improdutivos" impedem esse direito.

Mas acredito que o motivo profundo para a existência da catraca e da tarifa, a despeito de todas as possibilidades técnicas e políticas de bancar a tarifa zero, é o controle dos deslocamentos da população mais pobre. Para que os pobres, pretos e as pretas periféricas não acessem os mesmos lugares que a classe dominante, os patrões, a casa grande. São palavras duras e há quem diga que não fazem mais sentido, mas discordo: a tarifa é um elemento de controle territorial de classe.

O que significa um jovem favelado observar de perto a vida que dificilmente desfrutará? Ainda que não faça a associação consciente de que todo aquele conforto existe às custas do seu trabalho, da sua riqueza brutalmente transferida, quanto esse ressentimento, essa frustração entrarão em jogo como elementos disparadores de antigos traços pulsionais, inconscientes e agressivos?

Me recordo do belíssimo texto Pacto Edípico e Pacto Social do Hélio Pellegrino, psicanalista e  escritor, figura importantíssima para a psicanálise e para a vida política do país, pelas quais foi profundamente comprometido. À esquerda, claro. É um texto de 1983 no qual ele descreve o caminho pelo qual o indivíduo desenvolve sua relação com a sociedade, desde muito cedo, através do reconhecimento (muitas vezes doloroso) de que é preciso renunciar partes dos nossos desejos para ter acesso a uma realidade mais ampla. Na esteira desse processo de experimentação e de impedimento do que se deseja o indivíduo vai se formando sujeito, desenvolvendo seus traços característicos, sua forma de estar em uma comunidade, buscando novas formas de satisfação, de pertencimento.

Peço um pouco de paciência ao leitor e à leitora, pois não consegui finalizar este texto sem ter de descrever um pouco esse primeiro pacto que é o pacto edípico, pedra angular do pensamento psicanalítico.

Num primeiro momento, nos primeiros ano de vida, esse processo se desenrola na relação da criança com os cuidadores, mãe, pai e quem mais estiver desempenhando estas funções. A pessoinha vai sacando – ou é levada a sacar – que ela precisa escolher outros "objetos" para destinar seus desejos, objetos que não infrinjam  as leis fundamentais da nossa organização social: a proibição do incesto (relação amorosa entre pessoas do mesmo sangue) e o seu desfecho violento, o parricídio (a eliminação do rival também do mesmo sangue). No esquema absolutamente simplificado, que não dá conta da complexidade dessas relações: a criancinha que deseja o progenitor com o qual é mais apegada rivaliza com o outro progenitor. Este outro progenitor irá cumprir uma função de separação, de interdição do desejo voraz da criancinha pelo primeiro progenitor. Num contexto permeado pelo narcisismo e pelo medo do desamparo, a criancinha aceita a interdição. Mas aceita porque percebe que terá uma série de compensações,  que poderíamos resumir aqui como a entrada na cultura, na sociedade ampliada. Fica o registro de que certas restrições abrem perspectivas de novas satisfações.

Mas Hélio Pellegrino não acreditava que este primeiro pacto, o pacto edípico, seria suficiente para organizar a vida em coletividade. Seria necessário um segundo, posterior. Este, ainda bem, é um pouco menos complicado de explicar. Ele o chama de Pacto Social e diz respeito ao relacionamento do indivíduo com a sociedade através do trabalho.  Em primeiro lugar, este pacto só é possível pela base construída no pacto anterior cujo desfecho positivo nos faz internalizar a ideia de que quando existe uma lei justa que nos organiza, as renúncias farão sentido e nos trarão ganhos significativos. Não entremos aqui na discussão do quanto estas renúncias, mesmo com ganhos significativos, nos colocam numa posição subjetiva de mal estar, o impasse que Freud descreveu num dos seus livros mais importantes.

Bom, aqui o pacto é o seguinte: eu irei dedicar uma parte considerável da minha libido para fins "sublimados", nesse caso o trabalho. Será a minha contribuição para a vida coletiva. Em troca, espero que a coletividade retribua esse meu esforço me oferecendo aquelas coisas de que preciso e desejo para sobreviver e desfrutar a vida. Aqui aparece a crítica de Hélio: este pacto não é cumprido nesta sociedade, apesar de o prometer. A imensa maioria da população trabalha (formal ou informalmente) e produz riquezas que não são acessadas por ela. Riquezas da ordem material, como grana, teto e comida, e riquezas de ordem subjetiva, como o amor, o sentimento de pertencimento, o acesso à cidade e a liberdade de deslocamento.

O capitalismo produz este mal estar entre os mais pobres, o mal estar da exclusão, do não pertencimento ao lugar que só existe por causa deles. A partir daí Hélio via duas saídas: a primeira é a mais comum, a mais trágica, a mais pessimista. O indivíduo rompe com a lei, mas não só com a lei injusta, com qualquer lei. Ou quase qualquer lei. Ele revida a injustiça pela via anti-social, pelo crime, pelo não estar nem aí. Esse revide que Hildegard teme sofrer em sua praia da Zona Sul do Rio de Janeiro e que, talvez sem saber, só é acentuado pela própria proposta de Hildegard: mais exclusão.

A outra saída é a do sujeito que, apesar de reconhecer a impossibilidade do cumprimento do Pacto Social sob o capitalismo, trabalha para a emancipação rumo a uma sociedade onde tal acordo coletivo aconteça de forma plena. Talvez a diferença entre um e outro seja a qualidade em que se transcorreu o período de formação do pacto edípico? O pacto edípico por sua vez  se realizará melhor ou pior em um cenário em que a pobreza e a exclusão leve a população a níveis extenuantes de esforço, de renúncia, de insatisfação sexual até?

Do jeito que vejo as coisas, lutar pela tarifa zero significa lutar por uma perspectiva de sociedade em que as responsabilidades sejam igualmente compartilhadas. Uma perspectiva de sociedade no caminho da correção das leis impessoais da mercadoria acima da vida, do pacto social. A luta pela tarifa zero revela aquilo que é silenciado pelo funcionamento brutal e cotidiano da cidade: a exploração do trabalho, o pensamento apartheideano da cidade capitalista na qual a maioria não pode ir e vir quando e onde bem entender. A catraca é um muro, é uma prisão. E uma provocação, por ser uma prisão que gera muita grana para muito poucos.


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