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ataques-spBrasil - Caros Amigos - [Tatiana Merlino] Na terceira entrevista sobre a onda atual de mortes na periferia e Grande São Paulo, a defensora pública e coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, Daniela Skromov de Albuquerque, aborda a ação da Polícia Militar e vê relação com as mortes ocorridas em maio de 2006 quando houve o levante do PCC contra as forças de segurança.


Leia a primeira entrevista aqui e a segunda aqui.

Caros Amigos - Recentemente houve um grande aumento do número de homicídios dolosos em São Paulo, com aumento do número de mortes pela PM e seu grupo de elite, a Rota. Você acha que existe alguma relação entre o que ocorreu nos últimos meses em São Paulo e o que ocorreu em maio de 2006?

Daniela Skromov de Albuquerque - Provavelmente. O que dá para perceber é que tem um equilíbrio precário que foi rompido. E nesse sentido dá para fazer uma correlação com maio de 2006. Na verdade, os índices de mortes pela polícia já são estavelmente altos, são índices alarmantes. Os índices oficiais, sem contar aquela cifra oculta que nunca vamos saber, de cadáveres desconhecidos, mortes a esclarecer.

CA - Qual é o número?

DSA - Cerca de 500 a 600 mortes por ano no Estado de São Paulo. São índices oficiais, que é equivalente, ou até um pouco mais dos mortos e desaparecidos em toda a ditadura militar. E a gente está falando de um ano em um dos estados da Federação. Isso já é, digamos, um barril de pólvora. Mas, como em geral, atinge pessoas tidas como descartáveis, digamos assim, pessoas que de fato não estão envolvidas no que se chama de crime organizado, ou pessoas que de fato são aqueles suspeitos habituais: preto e pobre da periferia cujas famílias também não tem muita voz, não sabe nem o que está acontecendo direito, não tem uma leitura política da coisa, minimamente falando. Então é um número que se mantém estável provavelmente porque atinge de fato vítimas mais dispensáveis. As mesmas circunstâncias, quando aumenta esses números de morte ou quando a coisa se acirra é porque outras circunstâncias se agregaram àquela situação já existente. E ai vem algumas hipóteses.

CA - E aí dá para fazer uma relação com maio de 2006?

DSA - Dá para fazer uma relação. Existe algo muito abafado que é a relação entre violência policial e corrupção policial, e um certo pacto entre agente públicos do Estado e o PCC. Isso é muito claro na sistemática das prisões. Quando uma pessoa é presa, uma das primeiras perguntas que é feito para ela é qual é a facção que ela pertence. E, de fato, a situação da violência nas prisões e nas periferias diminuiu desde que esse pacto silencioso passou a existir. O que eu acho interessante disso tudo é que em primeiro lugar não se está assumindo que de fato é um novo maio de 2006, ou seja, nega-se a exaustão que tem alguma coisa a ver com essa dinâmica de relação entre Estado e PCC, ou essa quebra desse equilíbrio precário.

CA - Nega-se até que tenha a participação de policiais...

DSA - É. O que de fato é bastante assustador, porque não é negando que se consegue achar uma saída para o problema. Alguma coisa de bastidor provavelmente está sendo feita, mas não se sabe o quê. Que existe nas periferias e é um dos locais onde as mortes estão ocorrendo um pacto grande entre agentes do Estado e crime organizado, isso é fato. Mas, o que eu acho interessante que está acontecendo é que, em primeiro lugar se nega. Depois quando se aventa a possibilidade de ter de fato o PCC, a lógica é lógica de videogame, ou lógica de futebol. Então são os bons contra os maus. Como se o Estado fosse bom e o crime fosse mau. Na verdade, há uma ligação entre crime organizado e Estado não só através desse pacto silencioso, como também na mistura entre os seus componentes muitas vezes. Um a serviço do outro. Isso é algo que não está sendo levado em consideração e é algo que aconteceu em 2006, conforme evidências colhidas inclusive por entidades muito sérias, como a clínica de Direitos Humanos de Harvard, a Justiça Global, que fez um longo estudo que demonstra que neste momento de violência em que o start, o isqueiro aceso é o rompimento desse equilíbrio, através de atos de corrupção, de quebras de fidelidade ou de pactos que envolvem dinheiro. Da corrupção a violência vem atrás, ela faz parte dessa dinâmica de corrupção, não tem como separar a corrupção da violência.

E assusta muito quando as autoridades vem a público dizendo, por exemplo, "bandido que enfrentar a polícia vai levar a pior". O princípio civilizatório é de que a polícia não se equivale, não utiliza dos mesmos métodos de quem se chama bandido ou de quem a gente denomina bandido. E essa equivalência é possível de se perceber neste tipo de fala.

Por muitos anos, a Polícia Civil foi tida como a polícia corrupta e a Polícia Militar não. A Polícia Militar é a polícia violenta, mas não corrupta. Até hoje você conversando com pessoas esclarecidas, inclusive, você ouve praticamente este dogma. A corrupção é associada à Polícia Civil e violência à Polícia Militar, quando, na verdade, as últimas investigações- e não é de hoje- demonstraram que vários homens da Polícia Militar tem envolvimento em, por exemplo, assaltos a caixa de banco, como ficou denunciado agora. Há suspeitas sérias de que isso ocorre de maneira organizada. E aí acontece uma coisa que é muito nociva no meu ponto de vista. Faz anos em São Paulo que a gente vem assistindo um incremento da Polícia Militar em termos de orçamento, pessoal, e o sucateamento da Polícia Civil. Às vezes, a Polícia Civil não tem um computador e a Polícia Militar tem tablet nas viaturas. Gostemos ou não, nos países democráticos a polícia é a policial civil. É a polícia que pode detectar o crime organizado de fato. Porque o que a Polícia Militar faz de fato é reprimir o pobre na rua. É o pobre, o cara que não consegue correr, porque ela faz o policiamento ostensivo, sai correndo atrás das pessoas. É mais ou menos essa a dinâmica. E aí fica fácil imaginar que você saindo correndo atrás de alguém, quem você vai pegar? A pessoa que não consegue fugir ou que não consegue entrar no esquema de algum suborno. Uma pessoa fraca de alguma maneira: fisicamente, psicologicamente, socialmente e economicamente. E é essa opção polícia. Eu não sei se a sociedade tem consciência do que a gente está fazendo. Quer dizer, a gente está investindo há anos de forma crescente em uma polícia que tem como sua origem o combate ao inimigo e esse inimigo está na rua, não está no Jardins, não está em Alphaville, é um inimigo que está na rua, não está em Brasília.

Ao passo que a polícia que poderia em tese, não estou entrando no mérito da realidade, mas em tese fazer o trabalho de inteligência, que é o trabalho de toda a polícia em um país democrático, ela está cada vez mais engolida. E tem sido feita uma opção ao longo dos anos por essa polícia militarizada. E aí, isso também reflete nesse tipo de onda de violência. Porque a lógica é a lógica do combate ao inimigo. É um faroeste.

CA - E desses 500 casos de mortes por ano, quantos e como eles chegam à Defensoria?

DSA - Eles chegam pouco. E o que dá para perceber de fato, sem sombra de dúvidas, é um denominador comum entre os fatos. É sempre jovem, afrodescendente, muitas vezes com acusação que tinha algum envolvimento em crime. Mas tem vítimas que não tinham nenhuma passagem. Muitas com vários tiros invariavelmente em região vital: coração, cabeça, barriga, mostrando que o tronco (a região vital) é o alvo predileto na hora do tiro que a polícia dá. E em nenhum deles a polícia exatamente justifica se utilizou outro tipo de arma que não a letal. Nem se explica. Em alguns deles, as pessoas são enterradas como indigentes sem que o Estado tenha ido atrás dessas famílias para pelo menos a família ter o corpo e enterrar. É extremamente dramático. Eu não consigo imaginar algo com mais requinte de bizarrice do que o Estado que em tese existe para proteger a vida, e é por isso que ele nos cerceia tanta coisa, ele próprio tira a vida. Isso é uma situação dramática.
O Brasil já foi denunciado na ONU por outros países. Agora, recentemente até foi aprovado pelo Conselho da ONU uma recomendação ao Brasil, proposta pela Dinamarca para que a PM seja extinta.

É muito preocupante porque é um problema que só vem aumentando e atingiu índices mais ou menos de estabilidade que são inaceitáveis – entre 500 e 600 mortes por ano. Se você analisa os casos; primeiro altera-se a cena do crime invariavelmente. Há uma norma no Código de Processo Penal que fala que tem que preservar a cena do crime. Isso em qualquer filme básico de investigação norte-americano você vê. Sempre. Ou na enorme maioria dos casos que a gente tem aqui a polícia alterou a cena do crime. Fez o que se chama de falso socorro, que é colocar a pessoa muitas vezes morta no camburão e em alguns casos a gente tem a própria enfermeira ou quem recebeu o corpo no hospital escrevendo que já chegou morto. E a investigação que é feita é muito ruim. Os exames necroscópicos, os laudos são mal feitos, alguns até equivocados. Não é ouvida praticamente nenhuma testemunha além dos policiais. Então, a versão deles vinga. Sem contar que a investigação começa para apurar o crime da pessoa morta. Raramente você vê, por exemplo, a capitulação correta que é o homicídio. Se alguém mata a outra pessoa de maneira violenta, claro tem o direito de defesa, tem o direito de presunção? de inocência, mas o Boletim de Ocorrência tem que colocar lá "homicídio".

Então, muitas vezes você vê assim: o crime que o supostamente morto cometeu (roubo, tráfico ou às vezes o crime de resistência, o Artigo 239 do Código Penal). E embaixo assim: evento morte. Ou, às vezes, nem isso. Então todos os tipos penais, são tipos penais da pessoa morta e nunca do policial. Raramente, às vezes você vê, mas é raríssimo.

CA - E como é a investigação desses casos?

DSA - Não há a mínima investigação. O Ministério Público Estadual é muito falho nisso. E qual que á a dificuldade? Não tem recursos. O Ministério Público arquiva ou não pede diligência se não tem como recorrer disso. O grupo de controle externo da atividade da polícia aqui em São Paulo simplesmente não faz o trabalho que tem que fazer.

E aí na verdade o que a gente percebe é que as instituições são fracas. A gente não fez uma transição democrática de fato. A polícia continua com pequenas alterações. É a mesma polícia. Você vê as repressões nas manifestações. Dão tiro de borracha mirando para a pessoa quando na verdade tem regras para se usar a arma, e mesmo assim não é porque é uma manifestação coletiva que você necessariamente usa uma arma. Não tem proporcionalidade.

Outro aspecto é sobre isolamento e preservação da cena do crime. Eu desafio quem me traga algum caso de preservação da cena do crime. Preservação efetiva, estudo, perícia. Se tiver dá para contar nos dedos de uma mão em anos. A sociedade precisa saber do que acontece. É completamente dramático. E pior, essa lógica da guerra, dos bonzinhos versus os mauzinhos ela alimenta este tipo de coisa. Agora, claro, quem sofre são os suspeitos habituais. Sempre.

CA - Nesses casos que a Defensoria avalia, você disse que consta a ação da vítima e não do autor da violência. Isso é uma regra?

DSA - É regra para mais de 95% dos casos.

CA - É um assassinato...

DSA - Sim, que não recebe este nome. Que é uma vida que não merece, provavelmente, o nome de vida. É a única explicação. É quase que a concretização daquela frase infeliz que "bandido bom é bandido morto". Que sinceramente eu desconfio que é a grande parte da sociedade – que muito se fala – eu não acho. Eu acho que na verdade é uma inércia que é repetida, mas que de alguma forma vira parte de um boato que tem ligações com as nossas bases autoritária, nossa fundação. E como também a gente nunca passou nada a limpo... uma independência declarada por um imperador... É o país do "vamos dar um jeito" e ninguém coloca a mão na ferida. E aí as coisas ficam intocadas. E a violência institucional da polícia, sobretudo a Polícia Militar, é um desses problemas desses nós que nunca foram tocados como deveriam ser.

CA - E tem também o índice de absolvição desses policiais. É muito alto?

DSA - Na verdade aí é mais complexo. O gargalo primeiro é que eles não são nem denunciados. A denúncia, a peça que inicia a ação penal pelo Ministério Público, que é o titular exclusivo da ação. Primeiro que nem dá para ao MP fazer a denúncia sem indícios mínimos, e indícios mínimos quem colhe é a Polícia Civil, que está sucateada. É um xadrez que se encaixa. São alguns dos gargalos: investigação mal feita, mal realizada, a falta de denúncia pelo PM, depois vem os processos, em alguns pouquíssimos casos, e aí quando vem o processo, é o Tribunal do Júri que julga. Não saberia dizer, mas dizem que se absolve mais no Tribunal do Júri, que é a justiça não militar do que quando antes eram julgados pelo Tribunal Militar. Mas eu não saberia te dizer os dados. E aí outros fatos vem no Tribunal do Júri. Ali também pode se refletir sobre o apoio da sociedade a esse tipo de ação letal, o entendimento de que o policial também pode haver nesta dinâmica de absolvição, da lógica cultural de que bandido bom é bandido morto. Também pode ser o reflexo dessa cultura. E depois tem a presunção de inocência, quando não tem provas de fato tem que absolver. Isso é um princípio civilizatório que a gente não deve abrir mão. O problema é quando se subtrai o direito a verdade que vem de ima investigação minimamente efetiva. Porque a investigação não é exatamente para apontar que o policial é o culpado. Na verdade, existe um sucateamento geral, normalmente, da polícia de inteligência. A polícia científica, por exemplo, é inexistente. Na verdade, a perícia, não é nem polícia. A perícia é independente da polícia. E no Brasil já foi recomendado inúmeras vezes pelas instituições internacionais para que torne a sua perícia independente. Então o que a gente percebe é que este assunto da violência estatal é o ralo do que há de pior da nossa herança. É o ralo.

CA - Herança que você fala é a da ditadura militar?

DSA - Da ditadura, do que a gente não é capaz de olhar. Aquele juiz espanhol, Baltasar Garzón, tem uma frase que eu acho ótima que fala "não dá pra você virar uma página sem lê-la". É meio psicanalítico isso. Como você supera um trauma ou uma herança indesejada sem tocar, sem saber qual é essa heranças, sem tocar, saber qual a sua cara, para daí depois você se livrar. Se você não trás a luz e o episódio agora dessa onda de violência, ele pelo que parece as autoridades continuam nessa lógica de que não está acontecendo nada e também na lógica de negar, da negação, você não traz a luz ao problema. Perde-se uma oportunidade de, de fato, fazer a sociedade participar de uma realidade que não é essa que se conta, não é essa do videogame.

CA - Entre os crimes de maio e os crimes de junho de 2012 a polícia continua matando?

DSA - Isso é algo estável. Na verdade, cresceu até de 2006 para cá. Tem algumas pequenas quedas, mas é algo inadmissível. E ninguém fala nesse assunto. O que precisaria é uma prestação de contas desses casos. Não quer falar de hoje, não quer falar de maio de 2006, vamos pensar em um mês de 2009, aleatoriamente. Vamos falar de novembro de 2009.

Vamos pegar e analisar todos os casos. Você vai identificar muitas pessoas com tiros em regiões vitais, quase nenhum trabalho pericial, nenhuma testemunha civil ouvida, nenhuma justificativa do porque se utilizou em primeiro lugar a arma de fogo.

CA - A justificativa desses casos é "resistência seguida de morte"?

DSA - A justificativa é que o bandido entre aspas atirou e o policial revidou. Você não encontra nenhum policial ferido. Isso é resistência seguida de morte? Essa é a alegação. O suspeito resiste com violência e é morto. Sendo que se existisse esse crime, seria o ato do resistente que causa o resultado morte. Você percebe a impropriedade técnica? Se não, quem seriam mortos são os policiais. Isso se existisse, pois esse tipo penal não existe. Em tais casos, a cena do crime é invariavelmente alterada, o falso socorro é invariavelmente prestado, nunca o Samu é chamado.

Como exemplo, não precisa nem pensar em maio de 2006. Pegue um mês qualquer: você vai encontrar o mesmo modus operandi: os policiais invariavelmente não são feridos, não é nem feito exame de corpo de delito nos policiais, porque se a alegação é a resistência seguida de morte quem resistiu causou algum ato de violência, ou ameaça, mas enfim, violência ou ameaça contra o agente público. É sempre a mesma narrativa e sempre o suspeito invadiu, atirou, e às vezes atirou correndo. Eu fico imaginando como que ele consegue correr, virar atirar, às vezes em moto até. Policiais não feridos, pessoas com mais de um tiro em região vital, também não se percebe tiros em regiões não letais, isso pode ser um indício de que foi tentando só imobilizar a pessoa. Agora, é no mínimo desproporcional. Se não tem nenhum policial ferido na imensa maioria dos casos e vários tiros em região vital, isso deveria ser suficiente para mostrar a intenção de matar. Nunca é. Esses casos são arquivados.


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