Publicidade
Publicidade
first
  
last
 
 
start
stop
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (4 Votos)

131011 brasilBrasil - Caros amigos - Na opinião de muitos especialistas e do senso comum, a violência policial é reflexo do despreparo de certos policiais militares, quando não, da própria Polícia Militar. Ultimamente tem se tornado intenso a manifestação de desagrado de parte da sociedade contra o modus operandi da PM, principalmente por conta da repressão às manifestações populares iniciadas em junho deste ano pela redução das passagens do transporte coletivo, e que depois se estendeu para diversas outras questões. Nesse contexto, o Brasil reconheceu a truculência policial militar e voltou a reproduzir o discurso do despreparo policial.


Equívoco

Mas é equivocada a afirmação de que os policiais militares são despreparados, pois despreparo é a mesma coisa que preparo nenhum ou preparo insuficiente, o que não é o caso das Polícias Militares brasileiras. Os policiais militares são bem preparados segundo a lógica militar, segundo a lógica de um genuíno aparelho repressivo de Estado idealizado prevalentemente para a manutenção da ordem pública. Portanto, o que deveria se dizer é que a Polícia Militar é preparada de forma inadequada à democracia que se pretende para o país e para o exercício de segurança pública que essa democracia prevê. Sendo assim, o discurso do despreparo é um discurso equivocado na medida em que se confunde preparação inadequada com preparação inexistente ou insuficiente.

Por isso, devemos entender que o problema das polícias militares transcende a questão da legitimidade de suas ações, que faz pressupor a inexistência ou insuficiência de preparação. Dentre as profissões mais difíceis e perigosas instituídas no modelo capitalista está, por certo, a profissão policial militar. Essa profissão não é difícil e perigosa apenas por sua rotina de confrontos, mas principalmente pela submissão de seus agentes a uma ideologia que os enclausura a crenças absurdas: que estão à parte da sociedade; que são diferentes dos integrantes de sua classe de origem; que devem obedecer prontamente as ordens recebidas; que há honra em se morrer pela pátria; e, principalmente, a de que aquele que está em desacordo com a ordem jurídica vigente é inimigo público, cuja periculosidade é medida por seu grau de desajuste em relação à normalidade sistêmica.

Ideologia

Qualquer integrante das polícias militares brasileiras é submetido desde os primeiros momentos da preparação policial, à ideologia militar. A partir daí inicia-se o processo de transformação humana, em que, independentemente da formação familiar e social anterior, deverá tornar-se um “soldado”. Eis a transformação que leva esse ser humano aos mais diversos conflitos sociais e até mesmo existenciais que o predispõe a comportamentos truculentos, frios, e muitas vezes desumanos para o ponto de vista da sociedade civil, pois o “soldado” é um “Ser” preparado para a guerra, para o combate, para a pronta obediência (muitas vezes de forma irrefletida) – é um “Ser” preparado para cumprir missões, sem discutir. A vida social desses profissionais sofre, então, uma alteração verdadeiramente ontológica, pois o “si” anterior jamais será o mesmo, há um novo “si”.

Aprofundando um pouco mais nesse processo ideológico, podemos dizer, a partir da descrição de Althusser, que a ideologia militar será materializada para os novos integrantes do quadro da “gloriosa PM”, por meio dos incansáveis e infindáveis movimentos decorrentes do condicionamento militar, que sustentarão, juntamente com a repressão interna dos regulamentos inflexíveis, a inquebrantável “hierarquia e disciplina militares” – coluna fundamental da existência militar; e será ratificada continuamente por meio do discurso interno, ou seja, o discurso para si mesmo. Essa materialização da ideologia militar encontra na ideologia moral do “dever” a “argamassa” que garantirá a sua realização de forma cada vez mais tenaz nesse “ex-ser-social”, que, assim, assumirá cada vez mais definitivamente a condição de “ser-policial-militar”, o que por sua vez garantirá, também, sua fidelidade axiomática à ordem jurídica vigente, sem se importar a que interesses essa ordem represente. Dessa forma, a partir daí, estará sujeito a pensar de forma diferente e a agir de maneira diversa do padrão civil.

Carandiru

Destarte, podemos buscar o entendimento de alguns importantes elementos que influenciam determinados comportamentos policiais militares, especialmente aqueles que incitam as críticas da opinião pública. Um dos mais marcantes episódios da história da PM de São Paulo foi o conhecido “massacre do Carandiru”, ocorrido em 1992, cujo resultado, além da lamentável morte de 111 presos, foi a condenação de 25 policiais a 624 anos de prisão. Lançando um olhar simplista sobre o “caso Carandiru”, poderíamos afirmar que a condenação dos policiais foi mais do que justa. Mas quando buscamos as verdadeiras causas dessas tragédias humanas, porque o Carandiru não foi a única em nossa história, verificamos o quanto é forçosa a reflexão, logo, a ponderação. Quando nos deparamos com a ideologia imposta pelo sistema militar a esses profissionais, sentimo-nos advertidos de que o problema está para além da mera responsabilização legal pelas ações violentas desses agentes, o problema envolve a tudo e a todos que mantêm esse sistema e sua ideologia como fundamentos na preparação e orientação dessas polícias.

Capitalismo

Tendo na ideologia o elemento essencial para esta análise, devemos compreender primeiramente o processo ideológico que submete toda a sociedade, para depois entendermos a função do processo ideológico militar descrito anteriormente. Para Althusser, a sociedade é formada e padronizada por meio das diversas instituições que compõem o conjunto de aparelhos ideológicos de Estado, cujo objetivo é propagar e manter a ideologia dominante, ou seja, o capitalismo, de tal forma que a repressão se torne um instrumento que deve ser utilizado apenas em última instância, se for necessário. A escola é considerada por esse filósofo francês como o aparelho ideológico mais importante a essa ideologia dominante, visto que os seres humanos a ela se submetem desde tenra idade e por período de tempo consideravelmente longo, sendo condicionado desde a infância a uma normalidade sistêmica que não pode ser alterada, senão pela própria vontade das classes dominantes.

Essa ideologia geral deve manter, na medida do possível, a normalidade sistêmica que nos referimos no parágrafo anterior, mas quando não consegue, o capitalismo dispõe de ideologias particulares que se atrelam às instituições repressivas, possibilitando suas existências e suas ações. Essas instituições permanecerão compactas e inabaláveis graças às ideologias que as sustentam e cumprirão de forma eficaz os seus propósitos em relação à obediência civil, ao estabelecer um temor social a priori ou um temor social a posteriori. A ideologia militar é uma delas, e serve ao capitalismo principalmente em razão de uma ideologia moral, o dever, que obriga o “ser-militar” à defesa dos interesses de determinadas classes dominantes por intermédio da ordem jurídica vigente – o militar cumprirá seu dever com grande orgulho. Podemos até afirmar que a ordem jurídica vigente não determina o extermínio de ninguém, pois a condenação dos 25 policiais prova o contrário disso. Mas a ordem jurídica vigente não se resume a uma norma apenas, é um conjunto de normas construído para proteger e manter os interesses do sistema dominante e que depende, para esse fim, da ideologia e da repressão. Assim, o reprimido só reprimirá outros reprimidos quando estiver ideologicamente convencido de que é correto fazê-lo – daí deriva todos os equívocos e excessos.

Ditadura

A historicidade das Polícias Militares não pode explicar o processo de transformação de seres-sociais em seres-policiais-militares, mas pode revelar o momento e as condições em que esse processo foi instituído. Foi por meio do Decreto-lei 667 que em 1969 o “linha dura” Costa e Silva, amparado pelo Ato Institucional nº 5, reorganizou as Polícias Militares brasileiras tornando-as auxiliares do Exército na “imprescindível” ação repressiva, visto que os Estados não possuíam forças adequadas à esta função, pelo menos não de forma eficiente – era o auge da ditadura, das perseguições e da barbárie de Estado. Nossa polícia, que evoluiu desde as formas mais rudimentares no Brasil Império, experimentando, ao longo de sua história, diversas concepções de polícia, alternando ou misturando caráter civil e caráter militar de acordo com determinadas épocas, teve sua bagagem boa ou má, acumulada em sua existência anterior à ditadura militar, absorvida e adequada à lógica dos ditadores, e seu caráter militar imperfeito foi aperfeiçoado ao padrão das Forças Armadas, especialmente na questão ideológica que fez do policial um autêntico militar, tanto em tempos de paz quanto de guerra, tanto no trabalho quanto no descanso, tanto diante do auxílio a uma parturiente quanto no confronto com delinquentes ou trabalhadores em manifestações populares – essa ideologia e lógica prevalecem e orientam a preparação policial militar até hoje.

Massacre

Não bastasse isso, o Estado, representado por seus governadores ou secretários de segurança pública, não assume a responsabilidade pelos erros oriundos dessa inadequada preparação, antes, repassa a “culpa” para os servidores, como no caso do “Massacre do Carandiru” em que não respondeu por coisa alguma, assim como o chefe máximo do Executivo do Estado do Pará, e seu secretário de segurança não respondeu pelo também conhecido “massacre de Eldorado dos Carajás”, ocorrido em 1996; ou como no caso do assassinato de uma criança no Bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, na noite de um domingo do mês de julho de 2008, quando em uma abordagem os policiais efetuaram cerca de vinte tiros contra um veículo ocupado por uma mulher e seus dois filhos. Nessa ocasião o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro manifestou sua indignação, acusando os policiais de “despreparados”, como se a responsabilidade da preparação não lhe coubesse.

Democracia

Posto isso, a questão que resta é se não deveríamos cobrar o preparo adequado dessas instituições à democracia e à liberdade que pretendemos para o Brasil, para nossas vidas, ao invés de cobrarmos preparo ou mais preparo nessa lógica de guerra, de inimigo público, de inimigo do sistema, de inimigo do Estado a ser encontrado e eliminado. No entanto, para que isso ocorra, as Polícias Militares devem deixar o perigoso [para a sociedade] quadro das “forças auxiliares do Exército” e sofrer uma transformação estrutural e ideológica. Há muito tempo se discute esse tema, discussão que ganhou força a partir de 2009 quando a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, realizada em Brasília, tornou a desmilitarização das Polícias Militares uma diretriz para a segurança pública nacional, o que levou muitos a acreditar no enfraquecimento do lóbi militar e na inevitabilidade da desmilitarização. Todavia, o que se sabe é que essa discussão não progrediu da forma desejada, e encontra-se esquecida no CONASP – Conselho Nacional de Segurança Pública, esperando, talvez, o poder da pressão popular para voltar à pauta.

Enquanto isso as contradições seguem sua marcha, hora com o povo indignado e exigindo a extinção da PM, porque foi vítima de sua truculência; hora com o povo aterrorizado, como no caso de Salvador, na Bahia, em que o caos tomou a cidade e o número de homicídios disparou no período da greve dos policiais, “implorando” para que permaneçam. E assim, acostumados com os extremos, tenderemos a seguir reagindo como se nada fosse possível haver entre a existência de uma Polícia Militar e a sua extinção, e continuaremos a correr o risco de a história se repetir a qualquer momento, caso continuemos insistindo nas abordagens superficiais ao problema, ocultando, com isto, sua verdadeira natureza: estrutural e ideológica.


Por J. A. Burato, formado em Filosofia e Mestrando em Gestão de Políticas e Organizações Públicas pela Unifesp


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

first
  
last
 
 
start
stop

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.