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030812 servidorespublicBrasil - Observatório do Caos - Entre março de 1984 e o mesmo mês do ano seguinte, os mineiros de diversas regiões do Reino Unido sustentaram uma das mais duras greves do século XX contra o projeto do governo de Margaret Thatcher de fechar 20 minas de carvão, ceifando 20 mil empregos. O episódio, que à primeira vista poderia ser compreendido como apenas mais uma luta de comunidades de trabalhadores pela manutenção de suas fontes principais de sustento, adquire um significado bastante distinto quando posto em perspectiva histórica. Para isso, será necessário recuar alguns anos.

 


Em meados da década de 1970, a porção capitalista do mundo enfrentava uma grave crise econômica, que punha fim aos seus “30 anos gloriosos” iniciados após a II Guerra Mundial. As taxas de lucro caiam vertiginosamente, o capital se sobreacumulava, milhares de empregos eram extintos e muitas empresas faliam. Nesse contexto, dois dos principais países capitalistas elegeram governos truculentos que, munidos de um projeto comum de reorganização da economia e reforma do Estado, atuaram de forma a estancar os efeitos da crise. Para tal, Ronald Reagan (1981-1989) nos EUA e Thatcher (1979-1990) no Reino Unido detonaram uma onda de privatizações de serviços e empresas públicas, reduziram a rede de proteção social e desregulamentaram a atividade econômica, em especial, o setor financeiro.

Nesse esforço de desmonte do Estado de Bem-Estar Social erigido nas décadas anteriores, o ataque aos mineiros ocupava posição estratégica. Não apenas os mineiros constituíam uma das categorias mais organizadas da classe trabalhadora britânica, como as minas nacionalizadas em 1947 simbolizavam o projeto político do Partido Trabalhista, além de terem sido responsáveis diretos pela queda do gabinete do Partido Conservador chefiado por Edward Heath através de sua greve de 1974. Assim, a derrota dos mineiros em 1985, após dezenas de violentíssimos embates entre grevistas e forças policiais, representou a queda da última barreira, no Reino Unido, à implementação do programa neoliberal, que, a partir dali, avançaria cada vez mais até mundializar-se.

Hoje, a economia capitalista mundial novamente vê-se à beira do abismo consubstanciado na crise econômica. Não por acaso, a atual retração surgiu precisamente pelo esgotamento das soluções elaboradas para enfrentar a derrocada dos anos 1970. Embora os Estados Unidos e, principalmente, a Europa estejam, por ora, enfrentando suas manifestações mais sérias, a crise começa a ter, cada vez mais, seus impactos sentidos também aqui no Brasil, a despeito da retórica governamental. Redução do ritmo da produção industrial, desaceleração da geração de empregos formais, demissões em determinados ramos da produção, queda vertiginosa das previsões de crescimento econômico e aumento das taxas de inadimplência são apenas alguns de seus sintomas mais visíveis.

Nesse cenário, o governo federal, capitaneado por Dilma Rousseff e pela aliança PT-PMDB atua como enfermeiro das corporações que enfrentam maiores dificuldades. Como se não bastasse o fato de a remuneração dos rentistas proprietários de títulos da dívida pública consumir a maior parcela do orçamento federal (mais de 47% em 2012), desde o início do atual governo, em 2011, mais de 100 bilhões de reais já foram destinados, quase sempre por meio de renúncia fiscal, a diversos ramos da produção, garantindo a manutenção das taxas de lucro em patamares satisfatórios. O conjunto dessas medidas, por sua vez, elimina quaisquer dúvidas a respeito da opção classista do atual governo federal, que se mantém fielmente ao lado dos empresários. Eis, portanto, a razão primordial para a propalada falta de recursos públicos para o atendimento das reivindicações salariais e outras dos servidores públicos em greve (INCRA, IBGE, FUNAI, FUNASA, INMETRO, DNIT, Arquivo Nacional, agências reguladoras, educação básica e superior, Ministérios da Saúde, Previdência, Transportes, Desenvolvimento Agrário, dentre outros).

Essa opção, no entanto, precisa ser apresentada sob outra roupagem, para que se torne palatável para parcelas mais amplas da população brasileira. É com esse intuito que o governo Dilma passou a propalar a falácia de que essa maciça transferência de recursos públicos – oriundos de impostos pagos pela maioria da população – para mãos privadas teria o objetivo de garantir os empregos dos trabalhadores da iniciativa privada, que não desfrutam da estabilidade dos servidores públicos. Felizmente, como qualquer mentira, essa também tem pernas curtas e não foi muito longe, na medida em que o discurso oficial foi rapidamente deixado de lado quando o governo precisou aceitar e justificar a demissão, ao longo do último ano, de mais de mil trabalhadores da General Motors de São José dos Campos, justamente em um dos setores mais beneficiados pela redução do IPI no mesmo período.

Sendo esse um exemplo particularmente eloquente dentre outros, é preciso encarar a falácia governamental como o que de fato é: uma tentativa de dividir a classe trabalhadora, jogando os empregados da iniciativa privada contra os supostos privilégios dos servidores públicos, ao mesmo tempo em que o empresariado se apropria de parcelas cada vez maiores da riqueza nacional. Trata-se de uma ação emergencial, visando à minimização dos impactos da crise mundial no capital investido no Brasil, enquanto se busca um redesenho da dinâmica econômica capitalista mundial capaz de retomar, a nível global, a trajetória ascendente das taxas de lucro, replicando o feito alcançado pelo neoliberalismo a partir dos anos 1980.

Assim como coube aos mineiros levantar uma importante barreira àquele esforço de reestruturação capitalista, as atuais greves dos servidores públicos federais devem ser encaradas sob a mesma perspectiva. Distintamente do que ocorreu com os mineiros do Reino Unido em 1984-5, no Brasil hoje temos a oportunidade de levantar essa barreira enquanto não alcançamos o ponto mais baixo da curva econômica e antes que o projeto de rearticulação capitalista ganhe contornos mais definidos, o que amplia as possibilidades de resistência a essa ofensiva. Por outro lado, esperar mais para levantar as barreiras pode significar enfrentar, no curto prazo, um cenário muito próximo ao que vivenciam os trabalhadores de Portugal, Espanha e Grécia, em que a demora no estabelecimento de uma mobilização unificada efetiva permitiu o avanço de forças conservadoras e de sucessivos ataques aos direitos trabalhistas e sociais. É preciso, portanto, que as greves funcionem, como o fizeram em outros momentos históricos, como movimentos de construção explícita de projetos amplos de transformação social, e não como meras portadoras de reivindicações imediatas, ainda que as duas dimensões estejam intimamente articuladas.

Em parte, esse papel vem sendo cumprido com louvor. A denúncia da transfusão de verbas públicas – que poderiam ser empregadas na melhoria dos serviços oferecidos pelo Estado ao conjunto da classe trabalhadora, como saúde e educação – para bolsos particulares já traz, evidentemente, embutida a concepção de que a riqueza socialmente produzida deve ser socializada, e não apropriada por alguns poucos. Trata-se de uma bandeira fundamental para iniciarmos esse processo, mas para que ele se aprofunde, será necessário que as múltiplas greves concomitantes sejam transformadas no embrião de futuras greves gerais, pela consolidação de ferramentas organizativas que apontem para a unificação das ações do conjunto dos trabalhadores dos setores público e privado. Nesse sentido, a estabilidade não deve ser encarada como um privilégio, o que só redundará em divisionismo, mas como um importante instrumento de dinamização da mobilização da classe trabalhadora como um todo, uma vez que garante melhores condições de luta para um segmento da classe, cuja ação combativa poderá criar as condições para levantes das demais categorias.

A potencialidade política desse processo de unificação não passa despercebida pelo governo federal, que atua diuturnamente para fragmentar as categorias em luta. No caso das greves de trabalhadores da educação federal, essa tática se expressa claramente no esforço de desgastar os docentes pela apresentação dos mesmos como radicais, que deveriam aceitar o plano de carreira proposto pelo governo, deixando os técnicos-administrativos isolados em seu movimento paredista, sem que nenhuma proposta tenha sido apresentada para esses últimos. É precisamente nesse momento que se faz mais necessária uma ação de sentido oposto, capaz de fazer avançar a unificação das categorias em greve. Nesse processo, parcela considerável de responsabilidade recai sobre os ombros dos sindicatos mais combativos, como o ANDES e o SINASEFE, bem como dos demais organismos que atuam de acordo com a perspectiva da construção de um projeto político socialista comum a toda a classe trabalhadora, como a CSP- CONLUTAS. Igualmente importante será a superação, em favor da atuação conjunta, dos equívocos que marcaram ambos os blocos de grupos organizados da esquerda socialista no CONCLAT de 2010, o qual deveria ter iniciado o salto qualitativo na unificação da classe trabalhadora. Deixar, uma vez mais, de avançar na construção da necessária unidade poderá ter consequências políticas das mais graves já a curto prazo, mas principalmente numa temporalidade mais dilatada.

Diante dessas considerações, acredito que colocar em perspectiva histórica as greves dos servidores federais ora em curso significa, acima de tudo, enxergar essas greves como greves políticas. Não se trata, no entanto, de restringir seu caráter político às possíveis consequências que poderão acarretar para o desenrolar dos processos eleitorais municipais que ocorrerão em outubro desse ano. Fazer isso significaria jogar o jogo dos blocos de poder que atualmente disputam a primazia na gestão do projeto hegemônico das classes dominantes brasileiras, capitaneados por PT-PMDB e PSDB-DEM. Entender as greves como políticas em seu sentido radical significa, antes de tudo, apostar em seu potencial para funcionar como passo inicial da reunificação da classe trabalhadora em torno de um projeto societário contrário ao caráter inevitavelmente opressor e explorador dos trabalhadores e ambientalmente devastador do capitalismo. Mais concretamente, significa também compreender que uma derrota dessas greves hoje pode implicar na abertura para uma derrota de longo prazo, capaz de estender por décadas a ofensiva contra os direitos de todos os trabalhadores atualmente em curso. Afinal, quanto mais se aprofundarem as condições geradoras da crise econômica mundial e quanto mais forem retirados os direitos duramente conquistados pelos trabalhadores ao longo de décadas de lutas, mais difícil se tornará reverter o processo de recomposição capitalista ensaiado pelas classes dominantes e seus guardiães à frente da máquina estatal. Significa, por fim, entender que a batalha perdida em 1985 pode ser ganha em 2012 e além; que é possível construir uma sociedade em que nenhum trabalhador tenha que passar quase um ano sem receber seu salário por acreditar na justeza de sua luta política, tal como ocorreu com os mineiros.

Obs.: Agradeço a Adriano Zão, Demian Melo, Fábio Frizzo, Felipe Demier, Juliana Lessa, Luana Sidi e Rafael Maul pela discussão das ideias apresentadas nesse texto, as quais, evidentemente, são de minha inteira responsabilidade.


Foto: Desacato


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