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Nhanderu Marangatu 55Brasil - Le Monde Diplomatique - [Neimar Machado de Sousa] As raízes profundas do ataque contra os Guarani Kaiowá organizado por ruralistas do município de Antônio João (MS) que resultou no assassinato de Simião Vilhalva.


“Pai, afasta de mim este cálice”, cantou Chico Buarque, no tempo da exceção que virou regra (1964-1985). É preciso lembrar que no mesmo período os chamados atos de exceção afligiram  mais de 8 mil índios, de acordo com a Comissão Indígena da Verdade.

A exceção à qual me refiro é um pai chamado de Nhanderu, nosso pai, Marangatu, sagrado, na língua guarani. Este é o nome moderno de um território antigo localizado no município de Antônio João, MS, fronteira com o Paraguai. O nome do lugar, segundo declaração de um político local, difundida pelo rádio no dia 28 de agosto de 2015,  é "chapa quente!". (Leia: Lider indígena é assassinado em ataque de fazendeiros no Mato Grosso do Sul)

A tradução do nome guarani pelos moradores da região é nosso pai santo, referência ao Cerro Marangatu, Monte Sagrado. Os moradores das aldeias na região são do povo Guarani-kaiowá, um grupo étnico composto por mais de 30 mil pessoas, confinadas fisicamente, em pequenas reservas do tamanho das jaulas de Abu Ghraib, e linguisticamente, em escolas do tamanho do monolinguismo. Esta redução de espaco ocorreu sistematicamente após a criação do Serviço de Proteção do Índio em 1915, pelo governo brasileiro. Foi durante este período também que os índios foram destituídos de voz, pois eram os "silvícolas", termo usado pela legislação da época. Eram proibidos de se manifestar perante os tribunais, conforme regia o Estatuto do Índio, de 1973. Além disso, os removidos eram proibidos de deixar as reservas indígenas pela Guarda Rural Indígena, capitães e sargentos, treinados pela Polícia Militar, até 1988, 5 de outubro, quando o marco temporal, que estabeleceu o limite final para pleitear algum direito territorial perante os  tribunais, de acordo com entendimento de alguns magistrados depois do julgamento que confirmou, sob condições, a homologação da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima.

O direito de reparação para voltar a viver nos territórios tradicionais, tekoha, de onde foram removidos, foi reconhecido pelo Governo Brasileiro e recomendado no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014.

Os índios Guarani-kaiowa afirmam "pertencer" à terra indígena de Nhanderu Marangatu e que são removidos de aldeias na região há muito tempo. A confirmação está registrada num  memorando de 1952, escrito pelo  funcionário do Serviço de Proteção ao Indio, SPI, em Ponta Porã, MS, Agapito Boeiro. O documento, digitalizado pelo Museu do Índio, foi endereçado ao Diretor do Serviço de Proteção aos Índios. De acordo com Agapito, "o núcleo de índios foi afugentado pelo sr. Milton Correa, que embora dissesse, nao era dono de fato do local. Na remoção dos índios da região Costa de Estrela, um índio foi morto pelo irmao do sr. Miltom, Damico Damiano Corrêa. Na opinião do funcionário, as razões do crime eram afastar os índios das terras que ocupavam para se apoderem delas definitivamente". 
 
As pesquisas arqueológicas de Pedro Inacio Schmitz (1979), dão conta que a cultura guarani, como é conhecida hoje, tem sua origem nas matas tropicais que cobrem o rio Paraná, Uruguai e Paraguai, além de já se encontrar estruturada no século V d.C.. os Guarani-kaiowá de Nhanderu Marangatu são registrados na região, de acordo com documentação escrita, desde o século XVII nos arredores do rio Apa, conhecido no período colonial como Tepoty. Estavam relacionados aos guarani falantes que habitavam a Província do Itatim, nos arredores da Missão de Santo Inacio Caaguacu, seus ascendentes contatados pelos missionários jesuítas em 1630 (MCA, 1951). De acordo com o capitão espanhol Felix de Azara, que viajou pela região em 1789, a riqueza mais cobiçada era a mão-de-obra dos índios. 

Os Itatim são considerados na literatura etnohistórica como ascendentes dos atuais pãi-tavyterã, que habitam o Paraguai, e dos kaiowá, que habitam o território brasileiro, subgrupo ao qual se vinculam as famílias que formam o agrupamento de Nhanderu Marangatu. Sabedores disto, os fazendeiros locais, aliados com deputados, senadores e delegados, tentam empurrar com discursos e à força os índios de Nhanderu Marangatu para o Paraguai. Esta estratégia foi denunciada por Marçal de Souza, guarani assassinado no local em novembro de 1983. 

Os ensaios de cegueira e desaparecimento destes índios do mapa intensificaram-se após o Tratado de Madri (1750), indicando que os moradores originários eram estorvo para os colonizadores espanhóis e portugueses, que sonhavam com o embranquecimento da região, após consolidada a fronteira. Um destes colonizadores foi ao facebook e comentou a foto épica das viaturas e policiais perfilados do Departamento de Operações de Fronteira, DOF, à frente da casa grande de uma fazenda. Seu comentário foi "pau na bugrada", exibindo conhecimentos de geográficos e teológicos para provar que os búlgaros estão invadindo fazendas no Mato Grosso do Sul, manipulados por missionários demoníacos. 

Na atualidade, a leitura da mídia escrita e eletrônica indica que a riqueza mais cobiçada são os 9300 hectares homologados como integrantes da TI Nhanderu Marangatu. Esta terra, segundo um fazendeiro local, valeria 42 milhões de reais, valor da Indenização pretendida pelos títulos fundiários que possui. Desde 2005, este agrupamento de famílias aguarda uma resposta da justiça que suspendeu a homologação da terra deixando-os na posse de apenas 126 hectares da totalidade da área.

A análise das fotos do retorno às áreas tradicionais da região parece relacionada às lideranças religiosas. Um destes xamãs, chamados de nhanderu, é Loretito. Seu irmão, Simeão Vilhalva, foi assassinado durante ação conjunta de fazendeiros no último sábado. Após a confirmação da morte, advogados e policiais apareceram rapidamente e registraram as primeiras versões técnicas e científicas: o cadáver já tinha mais 24 horas; foi morto por projétil calibre 22. Afirmações que antecedem autópsia e inquérito e não levam em conta as informações dos índios que presenciaram o assassinato. Tais escritos difundem a ideia de que é habitual costume entre os bárbaros búlgaros matarem-se e imputar a culpa aos cristãos.

Informações que escaparam do confinamento midiático da área de conflito, apesar do bloqueio da estrada por políticos e fazendeiros locais, relataram mais de uma dezena de feridos à bala, reféns e um assassinato. O saldo resulta da justiça feita com as próprias mãos, com a conivência do Estado, no "peito", e parabenizada largamente nas redes sociais, rádio e tv's locais. O fato lembra o assassinato por envenenamento dos cinta-larga, apurado por Jader Figueiredo em seu relatório de 1967, indicando nome e sobrenome dos autores que "ainda caminhavam livremente pelas ruas".

Neste lugar, o cálice de sangue parece nunca encher. Ali, na entrada da Escola de Campestre, está o túmulo de Marçal de Souza (1983), lembrando os estudantes e professores da escola municipal a lição: "a justiça não foi feita!" O enfermeiro foi assassinado por apoiar os parentes e falar sobre o esbulho do território. Simião Vilhalva, também calado, não está sepultado ali. Ele foi assassinado no dia de hoje (29/08/2015), após reunião entre fazendeiros e políticos no Sindicato Rural de Antônio João. Após desta reunião, confirmada pelas redes sociais, dirigiram-se para a área ocupada a bordo de mais de quarenta camionetes, do mesmo modo que fuzeram recebtemente em outra àrea no município de Coronel Sapucaia, Kurusu Ambá. Segundo relatos dos índios, portavam armas e coletes à prova de bala. A área foi homologada como indígena pela Presidência da República em junho de 2005, mas o ato suspenso em seguida pelo ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal. 

Se é verdadeira a afirmação de que o modo como as sociedades indígenas são tratadas é um indicativo sensível da natureza social daqueles que com elas interagem, cabe perguntar em que momento perdemos a humanidade na região de Campestre? A acusação que pesa sobre nossa (des)humanidade pode ser formulada nestes termos: não se pode calar impunemente uma voz que clama por justiça, seja ela verbalizada em guarani, português ou espanhol. Com a palavra o Estado. 

Neimar Machado de Sousa 

Neimar Machado de Sousa é doutor em educação pela UFSCar e professor de geo-história colonial na Faculdade Intercultural Indígena - FAIND/UFGD, em Dourados - MS. Coordena o Serviço de Documentação e Informação sobre os Povos Indígenas. 


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