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090813 indigenasBrasil - Carta Capital - [Felipe Milanez] No Dia Internacional dos Povos Indígenas, na ONU, manifestações em todo o Brasil visam defender os direitos indígenas. Defender as sociedades indígenas é defender a própria existência.


Hoje é dia de ir pra rua. Dia de ato. Dia do Ato Nacional às Causas Indígenas, ou #AtoIndígena. Nas cidades, em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, onde haja mobilizações. Ou mesmo em Etenhiritipá, Tureidjam, Ipatse, Nova Esperança, nas aldeias aonde a luta política para a sobrevivência dos indígenas é diária.

Hoje é o "dia do índio" formalmente declarado pela ONU, cujo tema do dia é: "Povos indígenas construindo alianças: honrando tratados, acordos e outros arranjos construtivos". Hoje é um dia, nesse sentido, para se lutar em defesa do cumprimento de normas jurídicas em defesa dos índios. No Brasil, que passa por um momento de retrocessos históricos de direitos indígenas, o dia de hoje ganha uma importância ainda maior. É um dia, mas que deve se estender por uma semana, talvez um mês, de intensas mobilizações, pois é um período chave para a defesa das sociedades indígenas em meio a agitadas articulações de setores anti-indígenas no Governo Federal e no Congresso Nacional. E a defesa das sociedades indígenas é, na verdade, a defesa da sociedade.

Os povos indígenas, em todo o mundo, enfrentam um grande desafio para sobreviver. Suas terras preservadas estão sempre na mira de grandes interesses, seja mineração, agronegócio, madeira, diversas formas de indústria extrativista e saqueadoras. Há um metabolismo social mundial acelerado, exigindo produtos e mercadorias que são extraídos nas fronteiras de commodities, onde os conflitos são mais expostos e violentos.

O Brasil é uma dessas fronteiras, e não é apenas aqui que os povos indígenas estão sendo pressionados. Mas aqui a situação é uma das mais graves de todas. Em nenhum lugar tantos indígenas estão sendo mortos. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 563 indígenas foram assassinados no Brasil nos últimos dez anos. Além da bala, há uma assustadora violência estrutural e também epistemológica em curso contra as sociedades indígenas, vistos como o "outro", sempre de maneira inferior e a ser subjugada, vistos como "empecilhos ao desenvolvimento". Agressões cotidianas que convivem com discursos vazios sobre o "bom selvagem" do imaginário.

Os índios não são nossos "irmãos", nem são os "outros". Os índios somos nós mesmos. É como cantou Fagner, "Somos todos índios", ou disse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é". E todos nós estamos sendo trucidados. As sociedades no Brasil, sejas indígenas ou não, estão submetidas a rígidos mecanismos de controle cada vez mais autoritários, que disciplinam a própria possibilidade de existir. Nesse sentido, defender as sociedades indígenas é uma defesa da sociedade.

Nunca antes na história desse país ocorreram tantos retrocessos em direitos e garantias de sobrevivência física e cultural as sociedades indígenas. Retrocessos que representam uma nova organização jurídica local para permitir a extração massiva a despeito dos direitos dos grupos sociais que vivem nessas áreas, em seus territórios tradicionalmente ocupados. Nem no Chile, onde os mapuches são considerados "terroristas", há um quadro político tão desumano como o que ocorre no Mato Grosso do Sul, onde 37 indígenas foram assassinados ano passado (também de acordo com relatório do Cimi).

Por que o Brasil é tão racista com os povos indígenas que vivem no País? Será que há um movimento fascista em curso no Brasil? Existe no Brasil de hoje um movimento político e ideológico que explicitamente promove intolerâncias e preconceitos, há tempos enraizados em nossa história, de modo a favorecer seus próprios interesses de classe?

Ao se analisar as recentes mobilizações ruralistas, em que latifundiários se organizam junto a produtores menores para lutar "contra o direito do outro", é possível temer sim a gestação desse movimento perigosíssimo de intolerância.

Mas também é possível que o racismo exacerbado no Brasil seja uma ética justificada pelo bolso. Uma completa intolerância em aceitar que quem é visto como "outro" seja intitulado em posse de bens a quem estes, os "brancos", imaginam como seus. Isso é comum de se escutar no Mato Grosso, por exemplo, com a expansão da cultura e tradição racista dos migrantes sulistas, novos proprietários que, em muitos casos, cultivam um ar de superioridade e um olhar racista em relação aos antigos ocupantes destas áreas.

Os fazendeiros admiram raivosos a existência de áreas de cobertura florestal em posse de indígenas. É essa mensagem que pode transmitir, por exemplo, um convite distribuído pela Confederação Nacional da Agricultura para incentivar fazendeiros a aderirem a protestos com bloqueios de estrada e bloqueio de fornecimento de producão. Uma forma de um "lockout". A campanha, "Por Segurança Jurídica e Paz no Campo", continha um cartaz em que aparecia metade dele um lider xinguano. E dividindo a cena, uma espécie de fazendeiro. Ao fundo do indígena abria-se uma bela aldeia xinguana. Atrás do fazendeiro, um infinito mar de soja. A mobilização dizia-se "em defesa da propriedade", e também clamava um "fim dos conflitos no campo". Difícil imaginar que nada estava sendo pedido além de mais privilégios e benefícios. Sequer levava em conta a própria violência apresentada pela imagem do convite, expressamente racista. O panfleto fala que a terra indigena é entrave a produção, e que reclama da quantidade de terras indigenas, pois estes são "apenas" 0,42% da população, sem mencionar que a concentração de terras pelo agronegócio é infinitamente maior nas mãos de uma minoria. A fotografia que tenta sugerir uma "divisão", e uma cena que indica ser "pacífica", um fazendeiro dividindo espaço com um índio, na verdade é frontalmente contrária a própria existencia das comunidades indigenas e seus direitos territoriais.

É possível afirmar que esse movimento de "expansão de fronteiras" no Brasil é extremamente racista, remonta a Ditadura e segue se reproduzindo com extremo autoritarismo. Aquele em que migrantes se arvoram da grilagem e do saque dos recursos naturais, estabelecem violentos mecanismos de controle, e seguem para nova expansão. Como se o mundo fosse infinito. Deixam para trás terras devastadas, entregues ao especulador mercado de terras. Desvastam, queimam, destroem. Dilaceram uma rica diversidade ecológica e cultural, que é a floresta, para colocar fogo, deixar pasto por cinco anos, eventualmente trocar por soja, ou cana, em alguns casos abandonar uma terra arrasada, ou então apenas servir para a especulação ou mais alguns anos de uma producão intensa e predatória das riquezas do solo. As sociedades indígenas representam o oposto a esse movimento. Por isso são vistas como interferência inadmissíveis no processo de continua acumulação, acumulação por simples acumulação.

O desenvolvimentismo do governo federal segue a mesma conexão com o Estado autoritário que promoveu este modo de acumulação primitiva. Como se atrevem os índios munduruku a quererem proteger uma cachoeira que dizem ser sagrada em troca de uma usina hidrelétrica, pensam os governantes em Brasília? Como querem os diversos povos que vivem no Xingu rejeitar a construção de Belo Monte, um imperativo de melhoria de suas vidas que, na verdade, está destruindo suas vidas? Qual o espaço do sagrado face ao imperativo do progresso, esse monstro armado pela indústria extrativista difícil de ser parado?

Mesmo quando acena em defesa das sociedades indígenas, o atual governo o faz com um passo para lá, e muitos outros para o outro lado. Assim pode ser interpretada a nova "regra" que o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo pretende anunciar como a mais justa para se por fim ao sangrento conflito fundiário no Mato Grosso do Sul. Como os fazendeiros não admitem interferência em seus negócios, para devolver as terras da União para a própria União, em nome dos índios, só mesmo pagando. E pagando caro a eles.

A nova regra assume que, por exemplo, na terra indígena Buritis, do povo Terena, haviam sido expedidos pelo estado do Mato Grosso (antes da cisão do Sul), com aval da União. De acordo com a interpretação, isso caracteriza responsabilidade de ambos na titulação indevida. É dizer: "erramos". E as "vítimas" nesse processo, como caracteriza a regra, seriam os fazendeiros. Esses que ocuparam por décadas os territórios indígenas, destruíram as florestas, jogaram capim, plantaram soja, venderam madeira, e acumularam fortunas. Agora, por esse erro histórico que permitiu a exploração da área por um longo período, os fazendeiros vão ser indenizados através da transferência de Títulos da Dívida Agrária (TDA).

Esse acordo não é definitivo, mas seria uma forma de resolver o conflito sem mexer na Constituição, como tentam os ruralistas e o Congresso. Nas mesas de reuniões, tanto as lideranças terenas, quanto guarani e kaiowa, foram as figuras diplomáticas em busca de uma solução pacífica, elevando o patamar das discussões. Reuniram-se com fazendeiros, governo federal, inclusive com o chefe da AGU, Luis Inácio Adams, e ensinaram que ocupação indígena não é uma "invasão", e não permitiram que nenhum comentário ou insinuação racista saíssem ilesos.

E os terenas, que tiveram suas vidas destruídas, vivendo na miséria, empurrados para as cidades? Vão ter seu território dilacerado de volta. O erro do Estado só é assumido por um dos lados do conflito que foi causado, sim, pelo Estado.

Em termos históricos, essa situação me lembra o processo pós abolicionista. Recentemente foi divulgada uma pesquisa na Inglaterra sobre a vergonha colonial inglesa: encontraram os nomes dos proprietários de escravos que haviam sido indenizados pela abolição. Famílias hoje ricas teriam sido beneficiadas com fartas compensações por estarem "perdendo" seus escravos. Enquanto as famílias dos escravizados, que precisavam de recursos para conseguir mudar o destino de sua dominação, não receberiam nada. Apenas a alforria, como foi no Brasil.

O resultado é que as famílias ricas em todo o Reino Unido ainda desfrutam do que foi repassado a eles como produto da escravidão, a título de "compensação". Os negros vítimas do processo escravocrata seguem excluídos.

Ainda que as situações sejam muito diferentes, há alguma analogia a ser feita no sentido de que aqueles que mais sofreram com o erro do Estado nas últimas décadas não serão recompensados ou beneficiados. Como os terenas vão conseguir reconstruir o território? Será possível nascer alguma vida sobre a terra massacrada pelo agronegócio?

Os terenas vão entrar no limbo dos projetos de etnodesenvolvimento do governo, que apesar de terem propostas interessantes para a autonomia e protagonismo dos índios, são de lenta consecução. Enquanto o agronegócio será recapitalizado pelo Estado para partir em busca de novas terras - ou mesmo investir em novos meios de seguir explorando as terras indígenas, como tentam os ruralistas com o debate em torno do PLP 227, que tenta abrir os territórios indígenas, através de uma mudança constitucionais, para novas formas de exploração.

Além do PLP 227, está em andamento, entre uma série de medidas jurídicas e novas "regras": a PEC 215, que transfere para o Congresso a revisão de todas as demarcações, o novo Código da Mineração, que o governo tenta aprovar a toque de caixa, a regulamentação do direito a consulta dos povos afetados por grandes projetos, a portaria 303 da Advocacia-Geral da União, que é um ato institucional contra os direitos indígenas.

Argumentam os ruralistas que precisam de terras para alimentar o mundo. E essas terras estariam sob posse de seus "inimigos", aquelas sociedades que representam o que eles não aceitam, sejam indígenas, quilombolas, ou qualquer grupo social que seja um empecilho a seus negócios. Hoje, 30 milhões de hectares de terras no Brasil, que até pouco tempo atrás era cobertos de floresta, seja mata Atlântica, Cerrado ou Amazônia, estão habitados apenas por soja. Entre diversos usos industriais, a leguminosa serve de alimento para animais, especialmente porcos na China e na Europa.

É assustador imaginar que vastas áreas cobertas por tremenda diversidade ecológica tenham se transformado numa intensa unidade. Diversidade suprimida que não era apenas biológica, como pensavam os naturalistas, mas histórica e cultural a partir da relação com os povos indígenas que viviam lá. O drama, nesse sentido, é ainda maior. A soja, como outras commodities a exemplo do minério de ferro, cana, ou gado, serve de combustível para um motor de um processo de extrema violência.

O mundo é finito. A crise ecológica alerta para a ameaça da própria sobrevivência da humanidade. É um problema político urgente. Essa acelerada destruição do Planeta acendeu a luz vermelha sobre o futuro: não é possível continuar do jeito que está, com emissões de carbono em altíssimos níveis, um holocausto ecológico em todas as florestas, e massiva destruição das diversas culturas.

Para se ter uma ideia do tamanho da destruição massiva no Brasil, um antropólogo comentou comigo como os indígenas, em Cajamarca, nos Andes peruanos, estavam assustados com uma fumaça alaranjada em suas terras. Pensavam que era "agente laranja" lançado pelos Estados Unidos nas plantações de coca em regiões próximas. Na verdade, era fumaça das queimadas de Rondônia que haviam chegado até lá. "Mas o Brasil é longe!", teriam dito os índios. Ao que o antropólogo respondeu: "Mas a escala da destruição no Brasil é gigantesca, imensa".

Os mesmos que atacam os indígenas no Brasil são esses que estão destruindo o planeta. Há uma profunda correlação entre as sociedades indígenas e o meio ambiente, nesse sentido. Os mesmos que odeiam índios são aqueles que querem destruir a natureza. Unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas são sempre os alvos de ataques dos ruralistas e dos panfletos midiáticos ruralistas. Tudo para ganhar dinheiro. Defender as sociedades indígenas é, portanto, defender a própria existência num planeta cada vez mais em risco de se tornar inabitável.

Hoje, é dia de defender os povos indígenas, em favor das sociedades.


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