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310514 praia do futuroBrasil - Carta Maior - [Léa Maria Aarão Reis] Os (poucos) espectadores que se sentem insultados com as duas lindas sequências de sexo entre os rapazes deveriam sair também do armário; não do cinema.


Praia do Futuro já se posiciona como um dos melhores filmes deste ano. E um dos melhores do cinema brasileiro atual. O cinema que o cearense Karim Aïnouz vem fazendo (outros de sua autoria: Madame Satã, Céu de Sueli, Abismo prateado*) nos relembra que há vida inteligente nos filmes produzidos no país. O cinema independente, descompromissado, que chega do nordeste – inclusive do cinema de raiz que os pernambucanos fazem -, não se enquadra na moldura das produtoras majors tupiniquins e foge da linguagem narrativa – careta ou maneirista – das produções brasileiras que são extensão das novelas e das minisséries da televisão. O filme é resultado de um mix de investidores alemães e brasileiros e da produtora paulista Coração da Selva.
 
O cinema de Aïnouz é vigoroso e ao mesmo tempo delicado. Competente, maduro, profissional, seguro. E belíssimo. Narra a história original de um bombeiro salva-vidas trabalhando na famosa praia localizada a 11 quilômetros do Centro de Fortaleza atraído por um viajante alemão, um pouco beat, de passagem pelo Brasil e a caminho da Patagônia – o ator Clemens Schick. Relação iniciada na capital cearense, os dois viajam para Berlim, de onde veio Konrad e, lá, Donato, o brasileiro, vai viver com o companheiro, por algum tempo, uma segunda vida, distante do irmão caçula, Ayrton, menino muito ligado a ele, e que deixa para trás, no Brasil - é mais um excelente trabalho do jovem ator pernambucano de Salgueiro, Jesuíta Barbosa, do filme Tatuagem.
 
Antes de prosseguir nas observações sobre a beleza do filme de Aïnouz sublinhamos: preconceito, ignorância, cafajestismo dos que rotulam Praia como um suposto filme gay. Como diz o ator Wagner Moura – ele faz Donato, o bombeiro, e mostra que, nesse papel difícil, é, sem a menor dúvida, o melhor ator da sua geração: “O personagem não é apenas gay; é muito mais rico que isso. Mas se o filme ajudar a diminuir o preconceito, então é gay, sim.” 
 
Aïnouz por sua vez reage: “Acho homofóbico taxar qualquer filme como um filme gay. Quando você assiste Missão impossível ou Instinto selvagem fica pensando que é um filme hétero? Precisamos parar com isso. É politicamente perigoso. A insistência de falar sobre homossexualidade é maior no Brasil do que lá fora. Está ficando excessivo.”
 
Pelas mãos de Donato, o Capitão Nascimento de Tropa de Elite sai do armário. Os (poucos) espectadores que se sentem insultados com as duas lindas sequências de sexo e com a relação homossexual dos dois rapazes e saem, revoltados e ruidosamente do cinema deveriam sair também do armário; não do cinema, para permitir que o público que permanece – no cinema - assista o filme em paz.
 
(Adiante.)
 
Aïnouz divide o filme em três capítulos com títulos irônicos. O abraço do afogado – episódio do encontro dos rapazes a partir do afogamento do amigo de Konrad no mar de Fortaleza; Um herói partido – a dura adaptação de Donato à vida europeia, e o terceiro, Um fantasma que fala alemão - o reencontro com o irmão Ayrton, que havia sumido da sua vida, e anos depois vai ao seu encalço em Berlim onde o ex-bombeiro trabalha no aquário da cidade.  
 
Muitos símbolos e metáforas perpassam por Praia do Futuro. Os principais encontram-se sob o signo das águas. “É preciso,” diz Donato, “mergulhar no mar para subirmos à tona, livres”. No filme, há sempre uma pontuação com os mares daqui e de lá (secos), as piscinas, o notável aquário futurista, os vários banhos de chuveiro dos personagens; as chuvas finas e os nevoeiros melancólicos. Não é por acaso que o Donato criado por Aïnouz e Felipe Bragança, co-roteirista, é um salva-vidas: quem salva os que mergulham e não conseguem voltar à superfície.
 
O tema central, tratado com dezenas de sutilezas, mas explìcitamente através do personagem central, é o mal estar de não pertencer aos lugares – até mesmo quando a eles estamos de algum modo adaptados. Pertencimento e adaptação. Donato está sempre fora da sua pele. No sol da praia de Fortaleza, no frio opaco de Berlim. 
 
São lindíssimas as panorâmicas no Tiergarten e trepidantes as sequências das ruas que podem ser em Mitte ou Kreuzberg e percorridas por Ayrton. Os azuis desbotados dos capítulos alemães do filme remetem aos azuis e amarelos vivos, às cores primárias das imensas praias do norte/nordeste varridas pelos ventos e que ficaram para trás – elas são a sua origem dos irmãos. Mas a Europa funciona como poderoso íma. Atrai e coopta. Então, é preciso adaptar-se porque não há retorno possível.
 
As elipses de Praia do Futuro são calculadas com rigor e nunca comprometem o entendimento do público. A narrativa deixa um lugar, sempre, para que o espectador construa o seu próprio filme, sua história particular. Não há buracos em Praia, como querem alguns. Há espaços criados para que a imaginação e a fantasia do espectador se instalem e trabalhem. Por que a opção de Donato de não retornar à sua terra? E como seriam sua mãe e aquela família deixadas aqui? Donato partiu porque estava apaixonado? Konrad estava apaixonado por Donato? Ficaram juntos por muito tempo? Faça – ou refaça - a sua história.
 
Os cortes são precisos. Os enquadramentos, oblíquos, sugerem a tortuosidade de sentimentos e do se posicionar na vida.
 
Diretores de filmes da nouvelle vague francesa, e Alain Resnais em particular, acreditavam que aquilo que não é mostrado na tela é justamente onde se encontra a verdade dos personagens. Nada mais exato do que Aïnouz faz, neste seu lindo filme.
 
O reencontro emocionante, com pontapés, socos e os abraços comovidos dos dois irmãos depois de anos de ausência e abandono num corredor impessoal do edifício onde vive Donato, em Berlim, é uma das mais desconcertantes do nosso cinema. Os dois, Moura e Jesuíta se excedem em talento e carregam consigo o espectador na comoção contida. 
 
As sequências de sexo, na cama, são tão bem feitas que pela primeira vez no cinema nacional enxergo plasticidade nos lençois brancos amassados com justeza e sem a vulgaridade de cobertas amarrotadas que envolvem os corpos. São ternas as imagens do jovem cearense Jesuíta/Ayrton só, confuso, recém chegado à Alemanha e zanzando pela Alexanderplatz.  
 
Outra sequência espetacular mostra Donato faxinando as paredes de vidros transparentes do grande aquário da cidade. Peixe confinado, ele é o exilado das ondas rebeldes da Praia do Futuro – então, limpador de paredes.
 
O mais recente Festival de Berlim não recebeu com as todas as honras devidas Praia do Futuro, que disputava um Urso de Ouro embora Karim Aïnouz, cineasta e arquiteto formado pela Universidade de Brasília, seja respeitado e premiado em Cannes, Veneza, Roterdam, Havana e no Festival do Rio de Janeiro com seus longas-metragens. Bastante (re) conhecido pelo seu trabalho na Alemanha onde vive parte do seu tempo, já foi premiado com curtas considerados inovadores em Londres, no Canadá e nos Estados Unidos. 
 
A última sequência de Praia tem David Bowie cantando Heroes: Eu gostaria que você pudesse nadar como os golfinhos/ Embora nada, nada vai  nos manter juntos/ Oh, nós podemos ser heróis, apenas por um dia. Na panorâmica de abertura, as motos cavalgam as dunas da Praia do Futuro. Nessa outra, do fim, as motos dançam, suavemente, na neblina. O garoto Ayrton pergunta, incrédulo, ao irmão, os dois percorrendo a praia alemã coberta de neve e de mar recuado. “Mas esta é uma praia sem água?” 
 
Últimas imagens e as motos deslizam na pista antes de desaparecer no nevoeiro. Vão para onde? Rumo ao futuro, com certeza. Ouve-se a voz de Donato em off: ”... aceitar o quanto tenho medo das coisas, aceitar que tudo é perigoso no mar imenso.”
 
Que belo filme.


* Filmes encontrados em videoclubes ainda em funcionamento e que restam nas grandes cidades. 


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