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060614 torneira pag 06Brasil - Le Monde Diplomatique - [José Eduardo Ismael Lutti] Enquanto administradores de empresas públicas, ou de economia mista, como é o caso da Sabesp, e agentes políticos não forem pessoalmente responsabilizados por seus atos temerários, cujos resultados afetam a sociedade e o dinheiro público, o Brasil vai continuar sendo tratado como uma “república de bananas.


Disponibilidade hídrica para consumo humano na região metropolitana de São Paulo, posteriormente estendida à macrometrópole de São Paulo – aglomeração de Jundiaí e metrópole de Campinas/Piracicaba –, há décadas é de conhecimento das autoridades e profissionais da área.

A atual crise de abastecimento de água era previsível, ou como popularmente se diz, “uma tragédia anunciada”. As alterações climáticas também são preocupações que permeiam a vida moderna de algum tempo, tanto que, mesmo considerando a morosidade notória dos legisladores, São Paulo tem desde 2009 a Lei da Política Estadual sobre Mudanças Climáticas – Lei n. 13.978 –, que estabelece ações para contribuir com sua mitigação.

Essa crise já ocorreu em passado não distante e não com a gravidade da atual. Em 2004, quando da renovação da outorga para a Sabesp continuar retirando água do Sistema Cantareira, São Paulo enfrentava grandes dificuldades com o abastecimento de água, o que levou a acaloradas discussões sobre essa renovação. Este ano deveria ser novamente discutida a renovação dessa outorga, já que a de 2004 tinha validade de dez anos.

O Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), quando da renovação da outorga, não tendo mais como escamotear a leniência do Poder Público com a má gestão dos recursos hídricos, estabeleceu uma série de obrigações para a Sabesp. Entre elas, as dos artigos 15, 16 e 17.

Essas ações consideradas em conjunto e devidamente cumpridas ter-nos-iam protegido de uma crise tão grave quanto a que estamos atravessando.

A primeira − celebração de compromisso de ajustamento de conduta com os municípios integrantes da bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí com o estabelecimento, para o período de 2004 a 2014, de metas para o tratamento de esgotos, de perdas de água da rede de distribuição e ações visando contribuir para a recarga dos aquíferos − é de suma importância não só como demonstração de boa gestão e cumprimento da lei (tudo isso já era previsto em normas), como imprescindível para o aumento da disponibilidade de água para captação e tratamento. Do pouco que foi feito, os resultados são pífios.

As do artigo 16 determinam que a Sabesp encontrasse, nestes dez anos, alternativas para reduzir sua “dependência” do Sistema Cantareira. Igualmente pífios são os resultados das ações adotadas na região metropolitana para não ficar na dependência da importação de água. O Projeto Tietê, após mais de vinte anos e R$ 6 bilhões investidos, ainda não deu conta sequer de diminuir o grau de poluição do rio – em alguns aspectos e pontos de monitoramento, até piorou. Os reservatórios Billings e Guarapiranga estão altamente antropizados, com grande volume de matéria orgânica oriunda de esgotos sanitários não tratados, além de efluentes industriais, que inviabilizam seu uso correto.

A última das três obrigações citadas (artigo 17), que estabelece que a “Sabesp deverá manter programas permanentes de controle de perdas, uso racional da água, combate ao desperdício e incentivo ao reúso de água”, mostra o grau de desprezo que os administradores dessa empresa têm para com a legislação vigente e às autoridades constituídas, ou seja, com o próprio Estado de direito democrático, pois não cumpriu nenhuma dessas ações da forma pretendida pelo poder outorgante.

Exemplo disso é a falta de manutenção “permanente” de programas contra o desperdício de água e de seu uso racional. Somente nos três últimos meses, em face da crise do Sistema Cantareira, é que se vem notando propagandas nesse sentido. Entretanto, a empresa gasta milhões e milhões de reais anualmente com marketing institucional, muitas vezes enganoso, sem qualquer utilidade pública, como uma empresa que tivesse inúmeros e fortes concorrentes comerciais e precisasse manter seus consumidores fiéis ao seu produto.

As perdas físicas de água na rede chegam a absurdos 45% em pelo menos metade da região metropolitana de São Paulo.

Diante desse quadro, fica evidente que a atual crise de abastecimento de água era uma tragédia anunciada. A forte estiagem, com o perdão do trocadilho, só foi a gota d’água para que essa tragédia se antecipasse. O grande vilão não é São Pedro, que nos priva de chuvas, é o desrespeito com o bem público e com a sociedade.

Por tais razões, foi instaurado pelo Ministério Público um inquérito civil público visando apurar os responsáveis por esse conjunto de obrigações legais que foram sistemática e dolosamente descumpridas.

Enquanto administradores de empresas públicas, ou de economia mista, como é o caso da Sabesp, e agentes políticos não forem pessoalmente responsabilizados por seus atos temerários, cujos resultados afetam a sociedade e o dinheiro público, o Brasil – e, neste caso, São Paulo − vai continuar sendo tratado como uma “república de bananas”.

Como explicar que uma sociedade anônima, cujo acionista majoritário é o estado de São Paulo, polui sua principal − se não a única − matéria-prima, que é a água dos mananciais, com esgotos por ela captados e não tratados, mas devidamente cobrados como se tratados fossem, obrigando-a a gastar muito mais com tratamento e consequentemente cobrando mais caro pela água comercializada, e ao final de cada ano pagar dividendos vultosos aos seus acionistas?

Além das gravíssimas consequências às finanças da sociedade, essas condutas provocam resultados, não perceptíveis em sua integralidade, ainda mais graves a outro patrimônio da sociedade: o meio ambiente, especialmente os recursos hídricos.

A leniência dos órgãos de fiscalizações em não coibir essas condutas levou o Ministério Público a pleitear em ação civil pública uma alta indenização a essa empresa.

Some-se a isso, salvo raras exceções, um sistema de gestão de recursos hídricos que não funciona, seja porque alguns comitês de bacias hidrográficas não atendem aos seus propósitos legais, apesar de formalmente instalados e funcionando, seja porque nos últimos quinze anos as administrações estadual e municipal de São Paulo estabeleceram um processo, este, sim, permanente, de desestruturação da maioria dos órgãos ambientais. O DAEE, por exemplo, viu seu quadro de servidores – profissionais de várias especialidades – diminuir em proporções inaceitáveis apesar de sua absoluta importância dentro do sistema de recursos hídricos.

A negação de fatos que não interessam se tornou uma tônica da classe política nos últimos anos, e no caso específico da crise de abastecimento de água não é diferente.

Tais situações não se coadunam mais com as atuais regras constitucionais, notadamente ao direito da correta e completa informação de interesse público.

Creio que grande parte da culpa por tais práticas está na deficiência dos órgãos de fiscalização, como, para o caso, a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp).

A redução disfarçada de distribuição de água ocorre de longa data, ainda que de proporções menores, e, o que é pior, muitas vezes por deficiência de investimentos na modernização e construção de redes apropriadas, e não se veem medidas suficientemente fortes por parte dos órgãos de fiscalização para dissuadir a empresa de práticas ilegais.

José Eduardo Ismael Lutti é promotor de Justiça do Meio Ambiente da capital (São Paulo).

Ilustração: Daniel Kondo.


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