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2959834115 85e3e55753 zBrasil - Diário Liberdade - [Renato Nucci Jr] Há um consenso entre analistas tanto de esquerda como de direita, de que o sistema imperialista conheceu, a partir da década de 1970, profundas mudanças em suas estruturas de exploração e de dominação.


Foto de woodleywonderworks (CC by/2.0/)

A oligarquia financeira, de acordo com Lênin em sua obra Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo1, fração burguesa dominante que emerge em dito sistema pela fusão do capital industrial e do capital bancário, teve de encontrar saídas às ameaças ao seu predomínio econômico, político e ideológico concentradas entre o final dos anos 1960 e começo de 1970. Destacamos aqui a queda em sua taxa de lucro, o avanço das lutas anticolonialistas e a força do movimento operário nas potências capitalistas centrais. Condensadas, representavam sérias ameaças à ordem burguesa em inúmeros países, inclusive no centro do sistema.

Para contornar tais ameaças o capital monopolista promoveu mudanças que alteraram a face do sistema econômico e político mundial. Desconcentrou a produção industrial, exportando-a para países capazes de garantir salários baixos e pouca proteção social, graças a uma forte repressão política aos sindicatos. Também ganhou força política no interior da oligarquia financeira uma subfração rentista, já apontada por Lênin em seu trabalho, produto do aparecimento e relativo descolamento de um capital portador de juros, marcado pela atividade especulativa com ações. Essa massa abundante de capital em busca de investimentos capazes de fazê-la se apropriar de massas de mais-valia foi emprestada aos países dependentes para financiar certas política de desenvolvimento econômico gerando o fenômeno da dívida externa. Aspecto decisivo nessa mudança do sistema imperialista foi a de desenhar uma nova divisão internacional do trabalho, marcada pelo ataque aos projetos nacionalistas e anti-colonialistas, impondo a estes um papel de mero consumidor de produtos importados e de produtor de commodities agrícolas e minerais.

A crise da dívida surgida na década de 1980 a partir do aumento unilateral dos juros pelo Banco Central norte-americano fez os governos dos países dependentes, implicados em uma política de submissão ao imperialismo, a entrar em uma enorme crise econômica, política e social. As fontes de financiamento externo haviam secado. E tanto o refinanciamento da dívida antiga como novos empréstimos só foram concedidos mediante políticas de abertura comercial, desregulamentação da economia, privatização de empresas estatais, desindustrialização, reprimarização da economia e brutal ataque aos direitos sociais e trabalhistas. Esse conjunto de políticas ficou mais popularmente conhecido como neoliberalismo.

A reação da oligarquia financeira à crise de acumulação da década de 1970 encontrou o movimento operário e suas expressões políticas, principalmente os comunistas, mergulhados na política de conciliação de classe. Ao invés de se opor decididamente a esses ataques optaram por negociar os termos desse ajuste. Deve-se essa opção, em parte, ao abandono por parte do movimento comunista de certos instrumentos analíticos fornecidos pelo marxismo, principalmente aqueles relacionados ao caráter de classe do Estado. A razão desse abandono, conhecido como eurocomunismo, explica-se pela conquista nas potências capitalistas centrais de um sistema estatal de proteção social em um ambiente democrático burguês. Criou-se a ilusão no interior do movimento operário, amparada pelo surgimento em seu seio de correntes oportunistas, de um suposto caráter universal da democracia, bem como da possibilidade de se conquistar o socialismo por uma transição pacífica e sem rupturas com o capitalismo. Tornou-se o movimento comunista nos países cujos PC’s enveredaram por essa política a ala esquerda da social-democracia.

Para bem da verdade todos os povos, sejam das potências imperialistas sejam dos países dependentes, enfrentaram em maior ou menor medida essas políticas. Mas na América Latina, região marcada por níveis elevadíssimos de exploração capitalista e de subordinação ao imperialismo, a conseqüência das políticas neoliberais foi particularmente dura. Os pequenos avanços econômicos e sociais conquistadas ao longo de duras lutas do movimento operário e popular no século XX foram severamente atingidos. A desnacionalização da economia inserindo-a de maneira ainda mais subordinada ao circuito financeiro internacional se tornou regra. Os projetos de industrialização dependente foram substituídos por um retorno à primarização da economia. Empresas estatais foram privatizadas e os recursos naturais foram objeto de espoliação e pilhagem pelo imperialismo em associação com a fração associada das burguesias nativas. Os parcos direitos trabalhistas foram atacados e as redes de proteção social, como previdência e seguridade, desmontados. As contradições históricas de nossas formações sociais acentuaram-se. O caráter antipopular e anti-operário dessas medidas só foram possíveis de serem implantados com o recurso a sangrentas ditaduras militares, casos da Argentina, Chile e Uruguai. Analisadas em conjunto, o termo pilhagem, no sentido de saque e roubo realizado por uma tropa conquistadora, expressa bem o significado das políticas neoliberais. Pilhagem de direitos sociais e trabalhistas, pilhagem do Estado (cujo espólio é dividido entre frações burguesas seja sob a forma da privatização ou da concessão de serviços públicos por longos anos), pilhagem dos recursos públicos (a dívida pública é empregada como meio privilegiado para garantir a acumulação privada de capital), pilhagem dos recursos naturais (concentração e exploração predatória por intermédio de grandes empresas capitalistas da terra, da água e das riquezas minerais).

O caráter nefando dessas políticas para o proletariado e as classes populares foi a marca principal das lutas dos povos latino-americanos nas últimas duas décadas. A Bolívia foi palco da Guerra do Gás e da Guerra da Água, movimentos verdadeiramente insurrecionais contra as políticas de pilhagem e de privatização dos recursos naturais. Na Argentina, em 2001, uma insurreição popular derrubou diversos governos ao longo de duas semanas, expressando a insatisfação com duas décadas de políticas altamente agressivas e destrutivas. O povo equatoriano, principalmente os indígenas e os pequenos camponeses, vítimas da pilhagem de suas terras por multinacionais imperialistas apoiadas pelos governos locais, além das conseqüências nefastas da dolarização da economia, enfrentou o exército e derrubou dois governos. Na Venezuela uma insurreição popular em 1991, conhecida como caracazo, respondendo ao custo de milhares de mortos a uma política duríssima de ajuste econômico neoliberal, abriu uma conjuntura de intensas lutas populares. No México, em 1994, em reação a entrada em vigor do acordo de livre comércio com os Estados Unidos e o Canadá, conhecido como Nafta, indígenas e pequenos camponeses de Chiapas erguem-se de armas nas mãos e abrem uma conjuntura política nova em um país marcado pelo domínio de um partido político por longos 70 anos.

O resultado dessas lutas contra o movimento de pilhagem e de espoliação causado pela aplicação das políticas neoliberais foi a eleição entre o final do século XX e o começo do novo século, de sucessivos governos populares, muitos expressão dos movimentos sociais que enfrentaram e resistiram por anos a essas políticas. Em geral, esses governos se caracterizaram pela recuperação de suas riquezas naturais ou pelo travamento do processo de pilhagem, pela reestatização de empresas estatais privatizadas, por um maior controle sobre a entrada e saída de capitais, pelo esforço em manter uma política externa autônoma frente aos países imperialistas, pelo atendimento parcial dos interesses populares, por tentativas de superar as características marcantes da formação econômico-social latino-americana e, em casos como o da Bolívia, Equador e Venezuela, pela reivindicação de um projeto socialista.
O Brasil também passou por situação relativamente semelhante. A aplicação das políticas neoliberais a partir da década de 1990 produziu as mesmas conseqüências observadas nos demais países latino-americanos. Algumas singularidades, porém, diferenciam-nos do ocorrido no resto do subcontinente. País com grande presença do proletariado industrial, a primeira delas foi a desmobilização política e organizativa da classe trabalhadora impactada pelos efeitos da abertura econômica. Saindo de uma ditadura empresarial-militar, outra singularidade foi a incorporação ao jogo político-institucional dos principais instrumentos organizativos construídos pela classe trabalhadora ao longo da década de 1980, especialmente o PT e a CUT. As lutas de massa e de rua foram cada vez mais transferidas para o processo eleitoral, tornando-se aquelas apêndices e reforços para este. As greves minguaram, sendo muitas delas feitas não por mais conquistas, mas como reação à retirada de direitos. A dificuldade da classe trabalhadora brasileira em resistir a esses ataques, portanto, não se deve apenas aos efeitos nefastos da política neoliberal em sua organização e consciência política.

Deve-se, igualmente, ao oportunismo do campo majoritário petista e cutista ao enquadrarem as lutas nos estreitos limites das instituições burguesas em nosso país. Ainda na década de 1990, conjuntura crítica para a classe trabalhadora, pois marcada pela derrota das experiências socialistas, pela derrota eleitoral de Lula em 1989, pela aplicação das políticas de cunho neoliberal e pelas mudanças no processo de organização do trabalho, o campo majoritário do PT e da CUT se empenharam em costurar alianças com frações da burguesia brasileira, aproximando-se do chamado capital produtivo, de quem também passou a recorrer para financiar suas campanhas eleitorais. Por fim, a luta pelo socialismo foi relegada em favor de uma luta pela retomada do crescimento econômico.

Outra singularidade está naquilo que mais nos aproximou das experiências latino-americanas. A vitória de Lula em 2002 despertou imensas esperanças populares de reversão das políticas neoliberais e de solução das contradições estruturais de nossa formação econômico-social. Mas, diferentemente das experiências dos povos vizinhos, o mandato petista não se propôs a representar qualquer ruptura mesmo parcial com o projeto neoliberal. Ao contrário, seus pressupostos foram mantidos, bem como a hegemonia no interior do bloco no poder da subfração rentista-associada, cujos vínculos com as formas de apropriação de mais-valia estão ligadas ao capital portador de juros e cuja relação com o espaço nacional se faz em permanente associação com o imperialismo e os circuitos financeiros internacionais. A diferença de Lula e dos mandatos petistas em relação aos mandatos tucanos de FHC está em seu esforço por acomodar em melhores condições os interesses de outra subfração da oligarquia financeira, a funcionante-interna, cujos vínculos com as formas de apropriação de mais-valia estão ligados às atividades produtivas e cuja relação com o espaço nacional a coloca interessada em uma ampliação do mercado consumidor interno e em uma expansão das exportações de mercadorias e de capital. A capacidade em acomodar os interesses de ambas se deveu a uma excepcional conjuntura internacional, cuja demanda principalmente chinesa por nossos produtos agrícolas e minerais, provocou relativo dinamismo interno, aumentando a oferta de empregos formais e sendo responsável por gerar um movimento de maior interiorização do capitalismo brasileiro, expandindo-o para regiões antes pouco dinâmicas do ponto de vista da acumulação de capital. Do mesmo modo, os mandatos petistas utilizaram sua influência entre as lideranças políticas da América Latina para garantir a expansão dos grandes monopólios capitalistas brasileiros para a região.

A eleição de Lula, portanto, não representou qualquer mínima perda de privilégios para a oligarquia financeira. Manteve-se intacta a lógica do rentismo no processo mais geral da acumulação capitalista e na repartição da mais-valia, bem como o processo de pilhagem sobre os recursos públicos e as riquezas naturais, refletindo-se na permanência de sua hegemonia no interior do bloco no poder. E todas as políticas sociais do governo se acomodaram aos ditames dos organismos financeiros internacionais. Mesmo políticas supostamente destinadas a sanar demandas populares como o acesso à universidade e o problema da moradia, respectivamente o ProUni e o Minha Casa Minha Vida, representaram o repasse de vultosas somas de dinheiro estatal para grandes grupos capitalistas privados. Sumariamente, todas as políticas aplicadas pelo governo ficaram no âmbito das relações mercantis.

Combinada a uma política de expansão do crédito à pessoa física, popularizou-se o consumo de bens duráveis, incrementando a produção industrial e elevando as taxas de emprego formal. Conduziu o PT, por essas vias, uma política de apassivamento precária das massas populares, amparada também nos canais de influência e controle de que ainda dispõe no interior do movimento de massa. Tornou-se capaz, do mesmo modo, de contornar o enfrentamento das principais contradições de nossa formação social. Aferrado em construir uma base congressual de apoio, despojou-se de seu discurso ético e conciliou com as figuras mais sórdidas e corruptas da vida política brasileira, aprofundando os tradicionais mecanismos de cooptação de partidos e parlamentares pelo uso indiscriminado da liberação de verbas e loteamento de cargos no interior do Estado.

Com a chegada ao país dos efeitos da crise econômica mundial, a marolinha inicial se transformou em um avassalador tsunami. O ambiente econômico então alvissareiro, cantado em prosa e verso pelos ideólogos petistas, degradou-se rapidamente. E as contradições de nossa formação econômico-social que clamam por uma solução revolucionária, contornadas por meio da ampliação do consumo e de empregos formais precarizados emergiram desordenadamente nas manifestações de junho de 2013. As características do nosso capitalismo e suas contradições intrínsecas voltaram à cena. A tentativa petista de contornar o enfrentamento das contradições sobre as quais se alicerça todo o sistema de exploração e de dominação capitalistas em nosso país falhou. A vantagem comparativa do PT frente aos demais partidos da ordem burguesa, principalmente o PSDB, o de ser capaz de controlar o movimento de massa, esgotou-se. E setores da oligarquia financeira empreenderam uma busca por alternativas políticas capazes tanto em garantir o processo de acumulação de capital funcionando em detrimento dos interesses populares, como de manter apassivadas as classes dominadas.

Abrimos aqui um parêntese necessário, pois estrutura o nosso argumento no presente texto. Não existe um capitalismo com formas únicas por todo o globo, ou um tipo ideal de capitalismo, mas diferentes capitalismos, em outras palavras, um capitalismo realmente existente em cada país, cujas vias de desenvolvimento ocorreram em um ambiente histórico-social concreto. O capital, entendido como uma massa de valor que busca sua auto-valorização, precede o capitalismo e adquire faceta distinta ao longo da história humana: capital mercantil, capital comercial e capital usurário. O pleno desenvolvimento do capitalismo, portanto, foi precedido de processos econômicos, sociais e políticos nos quais o capital se acumulou sob formas não-capitalistas. As formas sob as quais se gestou a acumulação originária de capital determinaram as formas de transição para o capitalismo, inclusive a manutenção de certos traços dos modos de produção pretéritos na infra-estrutura material e na superestrutura política, jurídica e ideológica. Resumindo, em suas vias de transição concretas o capitalismo manteve traços dos modos de produção anteriores. Desse modo, o capitalismo possui traços estruturantes observados em todos os lugares nos quais é o modo de produção dominante: propriedade privada dos meios de produção, formação de uma massa de trabalhadores assalariados livres, transformação das necessidades do estômago e da fantasia em mercadorias, contradição entre o caráter social da produção e sua apropriação privada, excedente extraído do processo de produção na forma de mais-valia e a necessidade permanente de acumulação e reprodução do capital em escala sempre ampliada. Contudo, em cada país, ou regiões do planeta, o capitalismo transacionou com as formas sociais não-capitalistas, adquirindo alguns de seus traços peculiares.

Para Jacob Gorender, no Brasil essa acumulação se passou sob a forma de um modo de produção escravista-colonial. O capitalismo brasileiro jamais se desenvolveu sob formas de acumulação originárias de caráter feudal, pois o feudalismo jamais existiu em nossas terras. Por mais de 300 anos preponderou um regime de trabalho baseado na escravização de massas de povos africanos. Após a abolição da escravatura e a formação da república burguesa com a Proclamação da República em 1889, a constituição paulatina de um mercado de trabalho capitalista nos centros urbanos em crescimento foi acompanhada nas áreas agrícolas por formas camponesas dependentes. Desse modo, o capitalismo brasileiro se constitui pela absorção de fundamentos estruturantes como altas taxas de exploração do trabalho, adicionada por níveis ainda mais acentuados de exploração étnica, regionais e de gênero; grande disparidade no desenvolvimento econômico regional; elevadíssimos níveis de concentração da propriedade imobiliária e da renda; existência estrutural de uma força de trabalho abundante, cuja incorporação aos diferentes modos de produção sempre foi parcial e precária; e por último, mas não menos importante, uma forma de inserção específica do Brasil no sistema econômico mundial do capitalismo em sua etapa imperialista, como país dependente no circuito mundial do capital e produtor de commodities agrícolas e minerais. Para Barbosa, em suma, “o dinamismo do capitalismo industrial conviveu com a reprodução das desigualdades de acesso a terra, moradia, propriedade, educação, renda, riqueza e serviços”.

Toda a luta de nosso povo esteja ele consciente ou inconsciente do seu significado mais profundo, tenha essa luta perspectivas reformistas ou revolucionárias, giram em torno das contradições geradas pelas formas concretas assumidas pelo capitalismo em nosso país. Extirpá-las por uma via reformista é ilusão, pois funcionais ao processo de acumulação capitalista, o que requer a perenidade dessas características, vistos servirem de plataforma para os saltos de acumulação e os ciclos de modernização e atualização econômica correspondentes. Foi assim no período aberto com o fim da Segunda Guerra, principalmente sob o governo JK com o seu Plano de Metas dos 50 anos em 5, bem como durante o período do milagre econômico durante a ditadura militar. Os saltos gerados por esses processos acentuaram nossas contradições sociais, estimulando lutas operárias, agrárias e populares por todo o país. Mantém-se vivo, por tais motivos, os preconceitos de classe, étnicos, regionais e de gênero, pois justificam a manutenção de altos níveis de exploração das camadas mais vulneráveis da classe trabalhadora, tanto por parte do grande capital como pelas parcelas mais altas das camadas médias urbanas.

Garante-se a sustentação política e social de um sistema econômico tão excludente para a maioria da população dos benefícios materiais e culturais gerados por dois meios. Por um lado, do ponto de vista do Estado pelo recurso a formas abertas de ditadura ou a regimes formalmente democráticos, com eleições periódicas, mas incapazes de admitir a mobilização e a participação popular, sendo este objeto constante de criminalização e alvo da violência jurídico-policial do Estado. Por outro, compartilham econômica e politicamente desse regime de exploração parcelas abastadas das camadas médias urbanas. Ocupando nessa estrutura, a serviço do grande capital, o papel de gestores dos seus negócios públicos e privados, assim como de pequenos proprietários espremidos por esse mesmo grande capital, os benefícios por ela auferidos estão no acesso a um padrão de consumo suntuoso de mercadorias que servem como símbolos de conforto e de status social. Destacam-se igualmente por serem servidas pelos membros das camadas mais empobrecidas do proletariado com a prestação de serviços pessoais de baixíssima remuneração. Além de tudo, enredaram-se à lógica rentista, auferindo parte de seus rendimentos da atividade especulativa oferecida pelo sistema financeiro, investindo seu dinheiro em títulos de capitalização, em ações de grandes empresas e com o aluguel de imóveis. Satisfazem suas necessidades de consumo com saúde e educação no mercado capitalista. Por não necessitarem de serviços públicos, anseiam pela redução do papel do Estado defendendo, por conseguinte, a diminuição da carga tributária. Política e ideologicamente se vinculam a um liberalismo oligárquico.

A legitimação do capitalismo realmente existente em nosso país ocorre por uma relação de complementação entre o Estado capitalista brasileiro, que age por meio de seus aparelhos políticos, jurídicos, repressivos e administrativos no sentido de garantir a reprodução ampliada do capital através de formas específicas de exploração, combinada com a atuação dos aparelhos privados de ideologia, agindo como movimento de retorno sobre a infra-estrutura econômica para reproduzi-la. Creio serem essas as razões para a perenidade da chamada herança escravagista e aristocrática em nosso país, mesmo após quase 130 anos da Abolição do regime de trabalho escravo, para o qual concorrem fatores culturais cuja determinação em última instância é de um tipo de capitalismo capaz de legitimar com base no discurso meritocrático e na pura e simples discriminação étnica e social, as formas brutais de exploração do trabalho.

O mais recente ciclo de acumulação ocorrido sob os mandatos petistas, sobre os quais recaíam grandes expectativas reformistas, utilizou-se amplamente das características de nosso capitalismo, mantidos intocados e sequer retocados. Para tanto impôs o PT e seus braços no interior do movimento popular, assim como a figura carismática de Lula, como condição para alcançar o governo e manter a governabilidade, uma política de conciliação de classe em que prevaleceu a pusilanimidade. A despolitização e a desmobilização das massas populares foram à regra, resultado da covardia em se encarar nossas grandes contradições sociais, pois sua solução requer um nível de enfrentamento político para o qual o campo majoritário petista jamais se propôs a destravar. Preferiu, ao contrário, preservar tanto as bases de funcionamento das relações de produção típicas do capitalismo brasileiro, vendendo ao distinto público medidas cosméticas como grandes mudanças, como garantir sua governabilidade sob o argumento onipresente da falta de correlação de força. Adaptou-se o PT perfeitamente aos aparelhos repressivos e administrativos do Estado capitalista do nosso país.

A primeira década do novo século, sob os auspícios de um chamado novo desenvolvimentismo, teve como marca a manutenção do processo de pilhagem iniciado ainda no período FHC, assim como a acentuação dos níveis de exploração da força de trabalho. Dos empregos formais gerados nos últimos doze anos, mais de 90% pagavam até 1,5 salários mínimos e desrespeitavam os mínimos direitos contidos na legislação trabalhista. Na base dessa pirâmide salarial estão as parcelas mais vulneráveis de nossa classe trabalhadora: os negros, os jovens, as mulheres e os nordestinos. Dispararam as denúncias de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão, deixando o fenômeno de ser um “privilégio” das áreas rurais para ser utilizado em atividades urbanas e industriais como a construção civil e a confecção de roupas. A concentração da terra cresceu, assim como a disputa pelos recursos naturais como a água, resultado da força política assumida pelo agronegócio que se tornou a principal fonte de divisas externas, imprescindível para manter o modelo capitalista neoliberal com o país aberto ao livre trânsito de capitais. Os espaços urbanos foram alvo de um agudo processo de gentrificação, expulsando massas de trabalhadores pobres de certas áreas das cidades, movimento conhecido por higienização, bem como a uma degradação ainda maior da nossa caótica vida urbana, agravada pela redução de investimentos no transporte público de massa em favor do transporte individual. As discriminações étnicas, regionais e de gênero agudizaram-se, desdobrando-se em formas de violência estatal e para-estatal.

Mesmo diante desse quadro, os mandatos petistas se mostraram capazes de controlar o movimento de massa, tanto por suas relações políticas e organizativas com o mesmo, bem como por sua capacidade de apassivar precariamente a classe trabalhadora ao substituir uma cidadania de direitos por um acesso ao consumo baseado na ampliação do crédito para pessoas físicas e em seu endividamento, comprometendo os salários e a renda familiar com o pagamento de dívidas. O resultado foi o de tornar os trabalhadores ainda mais dependentes do mercado capitalista para o atendimento de algumas necessidades básicas em um quadro de baixos salários. A propalada ampliação do mercado de consumo básico acrescentou novos custos mensais como água, luz, tevê por assinatura, aluguel, internet, transporte e material escolar, escola privada, plano de saúde, manutenção do automóvel (mensalidade, IPVA, seguro, combustível, consertos, limpeza etc.), endividamento, juros do cartão de crédito etc. E para os mais miseráveis as políticas compensatória como o Bolsa-Família, gestadas nas entranhas do Banco Mundial, garantiu maior estabilidade política ao distribuir migalhas por vias estatais. Priorizando a acumulação capitalista em favor da oligarquia financeira, o Orçamento Geral da União manteve intacto o pagamento da dívida pública, aprofundando o desmonte dos serviços públicos por intermédio da terceirização e da privatização.

O agravamento das contradições de nossa formação social causado pelo novo ciclo de expansão capitalista, combinado aos efeitos da crise econômica mundial, explica as Jornadas de Junho em 2013. Impulsionada por um proletariado jovem ligado ao setor de serviços, ela serviu como catalisadora de uma insatisfação espontânea das massas populares contra as condições gerais de vida, mas politicamente desordenado e sem um vetor político. Todavia, a falta desse vetor, em outras palavras, a falta de uma alternativa comunista e socialista com enraizamento popular, fez o saldo político das manifestações não fechar com um salto na consciência política e organizativa do proletariado brasileiro. Explica-se essa situação, em parte, pela ação deletéria do PT e seus braços no interior do movimento de massa em assumir o papel de fiador da estabilidade da ordem burguesa no Brasil. Aplicaram, com eficácia, uma política de conciliação de classe que neutralizou toda a mobilização e contestação populares contra os altos níveis de exploração. Como último ato dessa tragédia enlameou-se moralmente ao assumir o modus operandi dos tradicionais partidos políticos brasileiros. E utilizaram dos recursos públicos para cooptar parcelas do movimento popular, desarmando-os de seus instrumentos críticos e de seu potencial de mobilização.

A desmoralização política do PT junto a parcelas importantes do eleitorado, principalmente nos grandes centros urbanos onde o processo de pilhagem foi mais acentuado, não ficou circunscrita aos limites da legenda. Seus reflexos atingiram um campo político e popular colocado à esquerda do petismo, incrementando as dificuldades para o aparecimento desse novo vetor político. Essa situação ganhou contornos nítidos na eleição presidencial de 2014. À falta de alternativas eleitorais de esquerda, o eleitorado popular em grandes centros proletários como o cinturão vermelho em São Paulo despejou votos em Aécio Neves ou em Marina Silva. No segundo turno, Dilma obteve uma vitória apertadíssima sobre o tucano no segundo turno, expressando seu profundo desgaste junto a parcelas das classes dominadas, principalmente aquelas localizadas nos grandes centros urbanos das regiões sul-sudeste.

Como forma de recuperar a confiança do conjunto da burguesia, Dilma aplicou antes mesmo de sua posse medidas de interesse da oligarquia financeira, opostas ao prometido durante a campanha, cujo efeito foi o de aumentar seu nível de impopularidade. Duas Medidas Provisórias editadas no apagar das luzes de 2014 dificultaram o acesso ao seguro-desemprego e as pensões por morte. Joaquim Levy, homem de confiança do sistema financeiro, foi indicado para controlar o Ministério da Fazenda. O resultado é conhecido: uma política econômica altamente recessiva de conseqüências nefastas para o emprego e a renda dos trabalhadores. Kátia Abreu, latifundiária e principal expoente do agronegócio foi agraciada com o Ministério da Agricultura. Para a massa de seus eleitores, as medidas de Dilma soaram como uma imensa traição diante de suas promessas de campanha de que não mexeria em direitos trabalhistas “nem que a vaca tussa”. E a oposição de direita capitaneada pelo PSDB tratou as decisões de Dilma como um estelionato eleitoral, encontrando eco em parcelas das camadas médias que formam sua base social e eleitoral. As constantes denúncias sobre esquemas de corrupção envolvendo petistas na Operação Lava-Jato, habilmente manipuladas pelos grandes meios de comunicação para aprofundar o desgaste do governo, engrossaram o caldo de descontentamento e de uma suposta ilegitimidade do segundo mandato de Dilma.

Com um governo profundamente fragilizado, sem uma concomitante mobilização do proletariado, setores políticos mais reacionários da pequena-burguesia ficaram à vontade para sair às ruas e exigir o impeachment de Dilma. A oposição de direita, PSDB e DEM à frente, incluindo parcelas do PMDB, passaram a flertar com tais setores, não por querer um golpe de Estado, como alardearam os petistas, mas por duas razões básicas. Primeiro, forçar Dilma a ampliar ainda mais as concessões ao grande capital. O objetivo em longo prazo, porém, é outro. Como indicou o senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, trata-se de manter Dilma sob constante cerco e ameaça, fazendo o seu mandato se arrastar até a eleição de 2018. Caso a proposta de impeachment realmente prospere, deve-se a medida extrema aos riscos trazidos pela impopularidade de Dilma para a governabilidade burguesa, precisando a oligarquia financeira recompor a legitimidade do seu sistema político. Como apontamos acima, após as Jornadas de Junho e no contexto de uma crise econômica que exige medidas amargas para a classe trabalhadora, o PT não é mais capaz de garantir com segurança o apassivamento e Dilma perde apoio até mesmo entre seus eleitores. Assim, uma mudança de governo via impeachment ou renúncia, poderia assegurar uma espécie de moratória da população a um novo governo, dando uma satisfação às parcelas politicamente mais reacionárias e conservadoras das camadas médias urbanas. E as medidas impopulares já tomadas por Dilma poderiam ser mantidas, justificadas com o argumento de estar visando um bem maior, qual seja, o de servirem para “arrumar a casa”. O mais certo, contudo, é o de vermos o governo se arrastar em agonia até o final de seu mandato, em meio a crises e denúncias permanentes, acossado pela oposição de direita e sua base social conservadora e reacionária.

Forçoso reconhecer a plena eficácia da primeira parte dessa estratégia. Aprofundou-se no Congresso Nacional, sob a batuta do seu presidente Eduardo Cunha (PMDB/RJ), a política de pilhagem típica do neoliberalismo. Aprovou-se a terceirização das atividades-fins, a redução da maioridade penal e uma reforma política ainda mais anti-democrática, mantendo o financiamento empresarial. E para escárnio geral da Nação, Cunha impôs e conseguiu arrancar do governo a construção de um Shopping Center para os parlamentares ao custo de 1 bilhão de reais. Acuado, o governo Dilma não fez o mínimo gesto para barrar essas medidas. No caso da terceirização, preocupou-se com possíveis perdas fiscais. Já na redução da maioridade penal fechou posição com o senador tucano José Serra, sob a alegação de contornar um mal maior, admitindo a proposta de redução apenas para os crimes hediondos. E para coroar sua completa prostração, sancionou o vergonhoso projeto do ParlaShopping de Cunha.

As razões para o aparecimento de um cenário tão dantesco estão na dificuldade do proletariado em geral, e dos comunistas e socialistas combativos e classistas em particular, aqueles em manter sua mobilização iniciada com as Jornadas de Junho, e estes em se constituírem como uma alternativa política para as grandes massas. Registre-se que suas dificuldades não se resumem na simples inabilidade política de tais correntes em sem enraizar junto a camadas do proletariado. Deveu-se essa dificuldade, consideravelmente, a resposta violentíssima do Estado capitalista brasileiro. Por iniciativa de todos os seus ramos e de seus entes federados, as manifestações dirigidas por esse campo que se descolou do petismo foram alvo da repressão estatal. O tratamento da “questão social” como um caso de polícia, principalmente após as Jornadas de Junho, promoveu uma criminalização ainda maior da luta popular, incrementando os aparelhos jurídico-repressivos de novas armas, físicas e legais, para reprimir as dissidências à esquerda.
O vácuo político deixado por ambos abriu espaço para as parcelas politicamente mais conservadoras e reacionárias das camadas médias urbanas saírem às ruas e se apropriarem da insatisfação social exposto com as manifestações de 2013. Despejando suas esperanças conservadoras em Aécio e Marina na eleição presidencial, mobilizaram-se em diversas cidades do país ao final do segundo turno em protesto contra o resultado, insinuando possível fraude nas urnas eletrônicas. Um aspecto de relativa importância está no fato dessa insatisfação se localizar em São Paulo e cidades da região sul e sudeste. O caráter grotesco das manifestações, com alguns pedindo inclusive a intervenção militar para salvar a Nação do “perigo comunista”, desnorteou e acuou não apenas o governo, mas também um campo político colocado à esquerda do governo.

Temos assistido, desde então, uma grave deterioração no quadro político e social. Focar suas causas apenas nos efeitos da crise econômica brasileira é um grave erro político. A particular gravidade da crise brasileira está para muito além das conseqüências perniciosas de uma crise econômica clássica, como desemprego, redução de ganhos salariais, recessão econômica ou redução nos investimentos públicos. A perspectiva é de que as contradições de nossa formação social, vivíssimas, funcionalmente mantidas, pois asseguram os saltos verificados na acumulação capitalista, tendam a se acentuar diante do agravamento da crise causado pela política econômica do governo, acrescida de um novo impulso ao movimento de pilhagem característico da política neoliberal. Contudo, essa crise não tem gerado como conseqüência uma resposta anti-sistêmica dos trabalhadores, principalmente do proletariado industrial, mas uma resignação dos mesmos às formas políticas e sociais que os mantém presos ao marcos de uma ordem capitalista apodrecida. Esse é o ponto mais grave da crise, qual seja o de estar perto de se exaurir e se esgotar nas classes populares brasileiras, uma reserva de criatividade política e organizativa, com conseqüências de longo prazo para a luta de classe no Brasil.

Mas a crise não é exclusiva do proletariado. Na outra ponta, as principais expressões político-partidárias da oligarquia financeira estão como diz o dito popular, mais suja do que pau de galinheiro. Todas as grandes personalidades e partidos políticos estejam à esquerda ou à direita no espectro político, todos os ramos do aparelho de Estado, chafurdaram na lama da corrupção realizando negócios escusos. Agrava-se a corrupção na máquina do Estado por causa da política da pilhagem, típica do período neoliberal, pois o caráter intrinsecamente predatório de um processo marcado pela transferência de recursos públicos para grupos capitalistas privados passa inevitavelmente por relações que envolvem esquemas criminosos de favorecimento a grupos capitalistas em detrimento de outros. Com isso, a oligarquia financeira e seus representantes políticos conduziram o país a uma fronteira perigosa. São Paulo enfrenta uma grave crise hídrica pela opção dos governos tucanos em privilegiar os acionistas da Sabesp e grandes empresas que consomem volumes elevados de água. A crise hídrica gera um grave risco de apagão. O reposicionamento do país na divisão internacional do trabalho como mero exportador de commodities tem levado a uma destruição de certos biomas importantes, como o cerrado e a floresta amazônica. Entregam-se os serviços públicos para Organizações Sociais, fachada muitas vezes de políticos interessados em formar, a partir da necessidade do povo, currais eleitorais que lhe garantam sua reeleição, transformando direitos em assistencialismo barato. Hipoteca-se a grupos capitalistas privados o controle econômico e conseqüentemente político e jurisdicional do patrimônio público. Eduardo Cunha, por tais motivos, não é um aventureiro, tampouco uma aberração política, mas a expressão mais perfeita da putrefação da burguesia no Brasil.

Do ponto de vista do proletariado, as razões desse quadro merecem profunda análise de todos aqueles interessados nos destinos da luta popular. Queremos, aqui, apontar alguns elementos. A causa primeira está na política de conciliação de classe petista, indisposta sequer a retocar nossas contradições sociais. Ao não se propor estancar a política pilhagem, agravado no atual quadro de acirramento da crise, os mandatos petistas contribuíram para desarmar a classe trabalhadora brasileira de instrumentos políticos e organizativos capazes de lhe garantir maior poder de resistência às ofensivas do grande capital. Tem ficado o conjunto da oligarquia financeira, desse modo, livre para retomar e aprofundar em níveis elevados o processo de pilhagem típico do neoliberalismo. A ampliação do consumo para as massas populares, como meio encontrado para seu apassivamento, não representou qualquer avanço em sua consciência política, cujo aparecimento exigiria o enfrentamento político dos interesses das nossas classes dominantes. Por se tratar de uma relação privada entre sujeitos individualizados com uma mercadoria dotada de poderes fantasmagóricos, esse consumo fetichista esteve associado a uma idéia de conquista e de ascensão individual no interior da sociedade burguesa, nada acrescentando à formação de uma consciência crítica e de classe. Ab’Sáber com muita perspicácia apontou o conteúdo profundo desse fenômeno da seguinte forma: “A cultura do governo Lula foi a da universalização do consumo, com a criação profunda de seu novo sujeito pós-moderno, sujeito do consumo, de agentes econômicos liberados para o vínculo com a mercadoria em seu primeiro nível de acesso, e não com a cidadania plena, e não abstrata, ou com o conhecimento livre ou crítico. Uma dimensão da subjetividade passou a ser a da transmissão direta do eu ao sonho e ao desejo de mercado”.

Fortaleceu-se ainda mais na consciência dos trabalhadores uma cultura descompromissada, individualista e despolitizada. Um exemplo está no deslocamento de parcelas importantes da juventude de periferia da adesão ao movimento hip-hop, marcado pela denúncia da violência policial, da desigualdade social e do racismo, para o funk ostentação, que consagra o consumo suntuoso de mercadorias e de mulheres, também transformadas em objeto de consumo. O mesmo pode ser dito do sertanejo universitário. Distintos na forma, ambos coincidem no conteúdo, ao glorificarem os valores individualistas, machistas e patriarcais presentes em nossa sociedade. E a luta dos trabalhadores, estimulada por um sindicalismo pelego e neo-pelego das principais centrais sindicais, domesticado pelo governo com os recursos do imposto sindical e comprometido com a manutenção dessa ordem, convergiu para o economicismo mais vulgar. Em momento algum buscou mobilizar os trabalhadores, aproveitando a conjuntura econômica favorável, para ampliar direitos como a redução da jornada de trabalho para 40 horas, ou exigir a eliminação do fator previdenciário, restringindo suas ações em realizar boas campanhas salariais e não cobrar do governo por meio de mobilizações a ampliação de direitos.

Outro ponto importante para entendermos o quadro atualmente observado está na profunda degradação da sociabilidade burguesa no Brasil. Esta, fruto da permanência e acentuação das nossas contradições sociais, reflete-se em altos níveis de violência física e moral entre os cidadãos. Duríssimas condições de vida, inexistência de instrumentos estatais de solidariedade social, competição acirrada pela sobrevivência, dentre outras razões, transformam o salve-se quem puder da vida diária em um permanente desrespeito a normas de convivência básica. Esse ambiente social profundamente degradado, em que a criminalidade é um de seus aspectos marcantes, torna propício o aparecimento de um discurso que apela para o disciplinamento dos corpos e das consciências, cuja saída estaria no recrudescimento das ações dos aparelhos jurídico-repressivos do Estado. Existem entre as classes populares, principais vítimas dessa degradação, uma ânsia pela ordem, que seria obtida tão somente pelo castigo e pela rigorosa disciplina. Por essa janela penetra o discurso fácil, que soa como música aos ouvidos da população, de políticos e apresentadores de tevê em favor da tolerância zero para com todo e qualquer delito, mesmo os de mínimo potencial ofensivo. Daí a aprovação de 90%, de acordo com pesquisas de opinião à proposta de redução da maioridade penal. Esse disciplinamento abarca, inclusive, a repressão e intolerância com toda forma considerada não convencional de viver a individualidade, refletida na persistência do machismo e na homofobia, assim como na perseguição aos cultos afro-brasileiros.

Sem uma saída alternativa colocada à esquerda no espectro político, temos assistido o discurso do horror e da barbárie desfilar impunemente, sendo capaz de influenciar amplas camadas do povo. As parcelas mais altas das camadas médias urbanas têm exposto abertamente e sem constrangimento seus mais abjetos preconceitos, dissimulando-os sob a roupagem do “politicamente incorreto”. As pautas democráticas e populares são sistematicamente achincalhados pelo culto ao obscurantismo político e social. O terrorismo de Estado praticado pelas polícias militares contra as parcelas mais empobrecidas da população é objeto de glorificação diária. A ignorância cultural, e com ela a intolerância religiosa, tem se tornado a regra. A bancada do boi, da bala e da Bíblia ganha espaço não apenas no Congresso, mas ocupa as ruas e as praças e tem audiência popular por meio de programas rádio-televisivos. Combinada ao quadro de aprofundamento da pilhagem, refletindo-se em um nível sem precedentes de degradação das instituições do Estado capitalista e de seus porta-vozes, e com a classe trabalhadora paralisada e sem capacidade de reagir à altura, corre-se o sério risco de entrarmos em um nível de desarticulação completa e irreversível do Estado nacional, tornando-nos um Estado e uma nação falida, incapaz de construirmos qualquer tipo de projeto nacional. Pode soar como exagero, mas caso o povo brasileiro tendo o proletariado a frente não seja capaz de reverter esse quadro, podemos estar assistindo o começo do fim do Brasil tal como o conhecemos.

Superar esse quadro irá requerer um longo e paciente trabalho de organização e de luta popular, em que a máxima leninista de “explicar pacientemente” ao povo as causas das mazelas que o aflige terá de ser repetida como um mantra. O próprio aprofundamento do processo de pilhagem pode levar a um nível tão acentuado de exploração e opressão, que incapaz de suportá-lo, massas populares em luta podem transformar as Jornadas de Junho em um passeio no parque. Todavia, é mais provável, caso os comunistas e socialistas não sejam capazes de estimular as lutas do povo, com este sendo revertido por alguma mudança brusca na conjuntura, de que as classes populares, no Brasil, tenham de passar por uma terrível experiência histórica para ganhar um nível de consciência que lhe permita enveredar por terrenos politicamente mais férteis.

Mesmo com o cenário de imensas dificuldades acima descrito, as contradições sociais estão aí, pulsando em todo o país. O que não falta são lutas a serem estimuladas e organizadas, pois o aprendizado político das massas populares se faz no embate concreto da luta de classe. Não importa, nesse momento, que essas lutas se limitem a reivindicar direitos básicos. O mais importante é colocar o proletariado em movimento como força social e política para renovar suas forças sua criatividade política e organizativa. Essa condição é imprescindível para que o mesmo se apresente ao conjunto das classes populares, inclusive para camadas médias politicamente progressistas, como um pólo alternativo ao conservadorismo social dos setores mais conservadores e reacionários das altas camadas médias urbanas, que ocupam o papel de tropa de choque dos interesses das oligarquias financeiras. Sem isso, estaremos fadados a vermos o processo de pilhagem impor uma derrota se não definitiva, no mínimo com efeitos de longo prazo ao povo brasileiro.

Campinas/SP, julho de 2015.

*Renato Nucci Jr. – Militante da Organização Comunista Arma da Crítica


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