Publicidade
Publicidade
first
  
last
 
 
start
stop
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)

fhc-ecio emarinhoBrasil - Brigadas Populares - [Bernardo Rocha Carvalho] Há uma frase bastante recorrente do escritor George Orwell, retirada de seu conhecido livro 1984, que diz: "quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado". Esse jogo de palavras pode ser uma introdução interessante ao principal argumento da campanha presidencial do senador Aécio Neves, uma figura política que só existe se sustentada permanentemente por certas narrativas fabulosas, que pretendem monopolizar a história recente do Brasil e, assim, controlar o passado a seu favor.


Foto: Tancredo Neves (primeiro presidente do Brasil depois da ditadura [1964-1985] e avô de Aécio Neves), FHC (presidente do Brasil de 1994-2002) e Aécio Neves (senador e atual candidado a presidência do Brasil pelo PSDB).

A começar pelo que inaugura sua vida pública, o fato de pertencer a certa "linhagem política", de ser neto do presidente eleito, que perdeu a vida em meio à transição do regime ditatorial para a democracia, e filho de um parlamentar de mais de vinte anos de carreira – que foi, também, secretário do Diretório Nacional do partido de sustentação do regime militar, a ARENA, mas esse fato obviamente não é oportuno para a campanha atual. O fio condutor desta narrativa, especificamente, favorece o surgimento de alguém que seria um político nato, e que estaria apenas esperando o momento de exercer plenamente sua maior vocação.

A sustentação, nesse caso, é exercida pelo mito político do referido avô, remetendo ao papel que Tancredo Neves exerceu numa delicada transição, num momento de crise que mobilizou praticamente toda a sociedade brasileira, ansiosa pelo seu desfecho. A figura de um homem "certo" para os momentos "incertos" – como Getúlio Vargas se referiu, certa vez, a Tancredo – é tão importante para este tipo narrativa, que se torna imprescindível a propagação de uma ideia de crise generalizada, o "momento incerto", uma crise que seria, fundamentalmente, econômica, mas que teria consequências políticas, institucionais e até nos hábitos e costumes da população. Está no cerne do argumento da campanha de Aécio um verdadeiro colapso, ou seja, a iminência de paralisação da vida produtiva do país, e recorre-se a quaisquer meios necessários para que esta ideia seja eficazmente reproduzida e disseminada.

No livro Mitos e mitologias políticas, o historiador francês Raoul Girardet chama a atenção para a necessidade de distinguir "a parcela do real e a do imaginário, a parcela de espontaneidade criadora e a da construção intencional". Distinguindo, então, períodos sucessivos, diferentes entre si por sua "tonalidade afetiva", mas articulados; identifica o "tempo da espera e do apelo: aquele em que se forma e se difunde a imagem de um Salvador desejado, cristalizando-se em torno dela a expressão coletiva de um conjunto (...) de esperanças, de nostalgias e de sonhos". E o subsequente "tempo da presença, do Salvador enfim surgido, aquele, sem dúvida, em que o curso da história está prestes a se realizar, mas aquele também em que a parte de manipulação voluntária recai com maior peso no processo de elaboração midiática" (GIRARDET, 1987, p. 72, grifos meus).

Eis alguns instrumentos teóricos que, acreditamos, podem ser pertinentes para se iniciar uma análise necessária do imaginário que alimenta a campanha presidencial aqui analisada. No entanto, complementarmente, não podemos descuidar da importância de levar os elementos histórico-mitológicos ali presentes ao escrutínio de análises criteriosas, que desvelam "conflitos e incongruências" (SILVA, 2010) em lugar da narrativa fugaz, típica de disputas despolitizadas – e "despolitizantes" – pelo poder político.

Aqui lançamos mão da reflexão histórica do prof. Wlamir Silva, Tancredo Neves: alguma história contra o mito, um fundamental ponto de partida para abordar a vida política do presidente eleito, em seu contexto, e em cuja introdução manifesta-se a crença na "eficácia heurística dos esforços biográficos, desde que rompam aparentes homogeneidades e revelem conflitos e incoerências no fazer da história e na moldagem das relações de poder" (SILVA, 2010).

A homogeneidade da trajetória política de Tancredo é rompida, inicialmente, com a retomada de algumas de suas movimentações progressistas, a princípio, com sua adesão ao nacionalismo de esquerda, característico da vida política nacional dos anos 1960, quando apoiou a candidatura do Marechal Henrique Lott, da coligação PTB/PSD, contra Jânio Quadros, do PDC coligado com a conservadora UDN. E, mais ainda, ao defender a posse de João Goulart, com a renúncia de Jânio, resistindo às agitações golpistas de setores que já tinham clara a intenção de obstruir a ascensão do nacionalismo de esquerda, representado, sobretudo, por Jango; "além de decididamente contrário ao regime de exceção e firme constitucionalista", (SILVA, 2010) características que dão sentido ao título tardio de "herói da liberdade".

É necessário, no entanto, prosseguir na análise e sopesar o progressismo de Tancredo com seu predominante pragmatismo, característico do PSD (Partido Social Democrático), "que ocupou o poder sob a prática clientelista construída sobre bases agrárias e pendeu para a direita, com sérios prejuízos à estabilidade política, quando os enfrentamentos políticos ameaçaram a estrutura arcaica do país" (SILVA, 2010); atributo que certamente contribuiu com a construção da imagem de um conciliador por vocação, e que o levou a ser uma "oposição confiável" para figuras da ditadura imposta em 1964. Aqui cabe uma citação mais extensa da análise a que nos remetemos:

"E o conservadorismo de viés pessedista continuou a orientar o líder mineiro já em fins dos anos 70, quando projetou o Partido Popular (PP). O PP, por 'sua composição política e pela conduta cautelosa de seus principais dirigentes', tinha a simpatia de membros do regime militar que viam nele uma 'oposição confiável' e um instrumento de transição adequado (RAMOS & CAMPOS, 2000, apud SILVA, 2010) [...]. No mesmo diapasão vemos o conflito com os 'autênticos' do MDB e o consequente resgate e fortalecimento de setores conservadores em declínio, como Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães e José Sarney. Ou a convocação da sociedade para um pacto social, com a suspensão temporária dos conflitos (SILVA & DELGADO, 1985, apud SILVA, 2010), a preservação dos militares golpistas e responsáveis por terrorismo de Estado e a diluição das reivindicações sociais num discurso genérico. Tancredo orientou, assim, uma conciliação conservadora que demonstrou um paulatino afastamento das questões políticas que emergiram nos anos 60 [...]" (SILVA, 2010).

Nosso objetivo, até aqui, foi, então, o de retomar aspectos históricos em contraponto a um dos mitos sustentadores da candidatura de Aécio, que depende tão fortemente de certaimagem da trajetória do avô, devido, em partes, às dificuldades impostas por sua própria trajetória. A "manipulação voluntária", e seu peso no "processo de elaboração midiática", conforme análise citada acima, de Girardet, é um fenômeno especialmente característico da campanha do presidenciável, e em torno de sua imagem pessoal, ensejando, na prática, o que o teórico Guy Debord chamou de "monopólio das aparências". No caso, o monopólio visado é o das aparências e das narrativas não só sobre Tancredo Neves, mas, principalmente, sobre o próprio Aécio.

Em artigo publicado no Observatório da Imprensa, o historiador Pedro Belchior retoma a dissertação de Marcel Ângelo, Vozes das Montanhas, que:

"disseca o esforço, por parte da campanha de Aécio, em resgatar a imagem arquetípica do 'político mineiro'. Na campanha de 2002 [para governador de Minas Gerais], Aécio valeu-se de um passado mítico, da força da tradição, do pragmatismo, da capacidade de conciliação de interesses diversos e de uma espécie de 'missão' à qual todos os filhos de Minas são chamados: intervir nos rumos do país em casos de instabilidade institucional" (BELCHIOR, 2014, grifos meus).

O esforço da campanha para o governo de Minas tinha entre seus objetivos, por exemplo, a desconstrução da imagem de um sujeito muito mais ligado ao estado vizinho, o Rio de Janeiro, que ao estado em que pleiteava a vaga de governador. Entre as quatro vitórias seguidas (duas de Aécio e duas de seu sucessor, Antônio Anastasia), a imprensa mineira foi, paulatinamente, se adequando a limites e condições impostas pelo grupo político do "neto do avô". Toda essa peculiar construção chega, então, ao seu momento mais decisivo, com a campanha presidencial deste ano de 2014. Belchior continua: "Repaginava-se, novamente, a figura do político ponderado, sine ira et studio, capaz de costurar alianças que vão do PSB (com a bênção da viúva de Eduardo Campos) ao direitismo mais raivoso do Pastor Everaldo e de Silas Malafaia; e a figura do político mineiro 'bossa nova', bacharelesco e hábil orador" (BELCHIOR, 2014).

Mas, como indicamos acima, mesmo a figura do político bon vivant, que emana virtudes, não se basta, e para compor o imaginário é fundamental reiterar o papel específico que ele virá a cumprir, num contexto quase calamitoso. Aqui aparece novamente a alegoria do mito, mas dessa vez, a obra é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos mentores da candidatura Aécio. Em entrevista à revista Veja, ainda em 1994, o intelectual explica:

"A minha experiência de campanha é a seguinte: tudo aqui é simbólico. Você necessita criar um mito. E tem que contar a mesma história repetindo quem é bom e quem é mau. Tem que ter dois 'Y' e vai mudando na estrutura do mito, como Lévi-Strauss. É binário: o bem e o mal. Tem que contar durante toda a campanha de várias maneiras, o mesmo mito. Em nosso caso é a moeda. O que é o mal? A inflação. O que é o bem? A estabilização. Foi o que fizemos. A cada momento eu ataco outra vez o mito principal. Mito no sentido antropológico. Você tem que chegar à estrutura mais elementar e insistir nela. A cada três ou quatro programas eu volto ao assunto. O real é bom, a inflação é má. Quem está com a inflação são os maus, quem está com o real são os bons. Foi apenas isso" (Veja, 27 set. 1994, apud OURIQUES, 2014).

Pela insistência e necessidade em abordarem-se questões econômicas pela via do mito binário de FHC, algo que, diga-se de passagem, também é bastante oportuno para o PT, o debate público fica limitado à mediocridade desta linguagem. Como aponta o economista Nildo Ouriques, em artigo para a Le Monde Diplomatique Brasil, discutem-se somente as taxas de juros e a inflação, mas jamais a dívida para a qual o Estado brasileiro nunca destinou menos de 44% de seu orçamento. Hoje faz parte do mote de campanha do PSDB vocalizar os anseios pela redução dos impostos, mas, como se essa carga elevada de tributos "não fosse, de fato, um princípio do endividamento estatal programado em junho de 1994 [...]. Em oposição, eles preferem afirmar que a dívida é resultado de um Estado ineficiente e perdulário" (OURIQUES, 2014), para pregar a crise imaginada, específica, de consequências nefastas, que teria seu antídoto às mãos do eleitorado.

E é essencial que a especificidade desta crise imaginada seja o elemento econômico, pois solucionar crises desta natureza seria, supostamente, a especialidade da linhagem fundada por FHC. Mas, esta retórica econômica débil é o melhor que o PSDB pode fazer para insistir em suas arcaicas cartilhas e justificar os futuros cortes de gastos, caso seu candidato seja eleito, especialmente num momento em que o mote de campanha deve ser uma suposta mudança. Diante das taxas cada vez menores de crescimento registradas pelo governo Dilma, tem-se o momento oportuno para anunciar as fórmulas mágicas, que só poderiam ser manipuladas pelo obscuro candidato. E, se tanto ao PT como ao PSDB não interessa mexer na espinhosa questão da dívida pública, mencionada acima, os números indicam um ajuste inevitável nos gastos do governo. Mas, aqui, como aponta o economista Sammer Siman:

"O que está em jogo é o ritmo desse ajuste. Aécio, por sua própria envergadura de classe ultra-conservadora e profundamente relacionada com o mercado financeiro fará tal ajuste 'sem dó', pois não tem os freios existentes no âmbito do petismo. Dilma, caso eleita, fará um ajuste de menor intensidade, mesmo porque se cortar de maneira radical as políticas sociais terá seu projeto político falido antes de 2018" (SIMAN, 2014).

Salienta-se aqui a continuidade, ao invés da propagandeada oposição, entre as políticas econômicas das fases neoliberal, de FHC, e desenvolvimentista, de Lula e Dilma; algo que, por si só, explica a impossibilidade de ambos os candidatos do segundo turno entrarem a fundo no debate econômico necessário, afinal, o desenvolvimentismo petista assenta-se, também, no pacto fundador do Plano Real. A estabilidade econômica foi comprada, em 1994, como explica Nildo Ouriques, ao custo da implantação da referida dívida pública, que é a consolidação por excelência da subordinação da economia nacional a interesses estrangeiros. Como não consta nos programas do PT um enfrentamento sério à dívida que subordina o Brasil, e menos ainda nos do PSDB, que é totalmente dependente do mito criado em torno da estabilidade como bem supremo, o debate entre ambos se reduz sempre à infértil disputa pelo lado positivo do limitado mito binário, que pode aparecer de diversas formas: inflação x estabilidade, continuidade x mudança, etc.

Portanto, para a campanha de Aécio, é necessário insistir no ponto em que a estabilidade conquistada por seu mentor, nos anos 1990, estaria sendo mal administrada e, assim, colocada em risco. Já se teria chegado, então, na extremada situação de solução única, que é representada nas peças publicitárias pelo mineiro ungido na política, pronto a cumprir seu destino-manifesto, herdeiro direto de duas linhagens mitológicas, a do avô conciliador e defensor da liberdade – ainda que tardia – e a do ex-presidente engenhoso e inatingível. Aqui, uma última vez, lançamos mão do historiador dos mitos políticos:

"(...) o homem providencial aparece sempre como um lutador, um combatente. Sempre ameaçado, sempre resistindo à beira do precipício, recusa submeter-se ao destino. Quer restaure a ordem estabelecida ou a subverta, quer organize ou anuncie aquela que está por vir, é sempre, por outro lado, sobre uma linha de ruptura de tempos que se situa seu personagem. É na manifestação do presente imediato – presente de decadência, de confusão ou de trevas – que ele se afirma e se define; com ele, graças a ele, o 'depois' não será mais como o 'antes'" (GIRARDET, 1987, p. 80-81).

Outro historiador, desta vez Jacques Le Goff, nos ensina que "se tornar senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. (...) os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva" (LE GOFF, 1984, p.13).

Na empreitada de Aécio e seu grupo pela presidência do Brasil, impera a necessidade em ser um "senhor da memória e do esquecimento", e em exercer a qualquer custo a "manipulação da memória coletiva", criando-se, assim, os contornos de uma história oficial, supostamente coerente, teleológica, autoexplicativa – mitológica. Daí, percebemos cuidadosamente ao tomá-lo como objeto de análise, uma busca insistente pelo monopólio do passado, a pregação de falsas comparações históricas, a simbiose forçada com os símbolos nacionais (as cores, o hino, etc.), além da evocação recorrente de sutis ameaças ao eleitorado, do enquadramento de todos os adversários como se fossem um só, e da mais pura demagogia no trato com as pautas progressistas que emergiram nos últimos anos no país.

Título livremente inspirado no livro La audacia y el cálculo. Kirchner 2013-2010 (2010), de Beatriz Sarlo. Agradeço ao amigo Sammer Siman pelos comentários encorajadores.

Referências Bibliográficas:

BELCHIOR, Pedro. Mineiridade, marketing político e raposismo. Set. 2014. 

GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Memória e História. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.

OURIQUES, Nildo. Plano Real: o mito da estabilidade e do crescimento. Ago. 2014.

SILVA, Wlamir. Tancredo Neves: alguma história contra o mito. Revista da Academia e Letras de São João Del-Rei, v. Ano IV, p. 77-87, 2010. 

SIMAN, Sammer. O "V"oto de vingança: quem perde é o PT ou o Brasil? Out. 2014. 

Bernado Rocha Carvalho é graduado em História e membro das Brigadas Populares - Minas Gerais.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

first
  
last
 
 
start
stop

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.