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pmmgBrasil - Diário Liberdade - "Só tem nóia nessa porra", "quem vai atirar nesses zumbis agora?", "manifestação acabou tem 2h", "manifestante de verdade está agora em casa dormindo", "vai descansar [dizia alguém recomendando ao cinegrafista que interrompesse sua tarefa], os nóias vão te roubar"...


Esses foram alguns dos comentários que li, estupefata, no decorrer da transmissão ao vivo pela PosTV durante os últimos acontecimentos que se desenvolveram em diversas partes de Belo Horizonte nessa quarta-feira, 26 de junho de 2013, quando manifestantes protestavam na Praça Sete, no centro da capital mineira.

Nas imagens, os tais "nóias" (termo usado pra se referir aos usuários de crack), os tais "zumbis" (designação que faz referência grotesca ao estado de "farrapo humano" no qual infelizmente muitas das pessoas em situação de rua se encontram), que na mente tacanha e maniqueísta dos manifestantes-comentadores que proferiram as falas acima iriam na primeira oportunidade pular no pescoço da primeira vítima desavisada para lhe roubar o que quer que fosse, se dedicavam exatamente a exercer o direito que esses mesmos manifestantes-comentadores outorgam pra si: estavam ocupando a rua. Literalmente. Sentados nela. Deitados nela. Ou rindo, gritando, cantando, dançando, fazendo "zueira". Em grupo. Ou sozinhos – quem sabe mesmo curtindo uma "viagem" ou um "barato". Sem nenhum vestígio de organização ou de propósito claro, sem obedecer a nenhuma palavra de ordem proferida por um megafone, sem empunhar nenhuma bandeira (seja de partido, seja do país), mas em puro estado de "anarquia" – subvertendo o termo, mas mantendo dele um de seus significados fundamentais: em puro estado de liberdade meio caótica, como toda liberdade tem o direito e o dever de ser... Estavam apenas ali, ocupando a rua, como fazem todos os dias, noite e dia, enquanto não são jogados dos bancos de mármore frios durante a madrugada, enquanto não são acordados pelo vai-e-vem dos trabalhadores logo cedo de manhã, enquanto a guarda municipal não os enxota de algum gramado – ou, pior, enquanto não recebem uma bala na cabeça disparada por dois capangas do Estado em uma moto disfarçados de "gente comum". Tudo isso depois da Polícia Militar evacuar com base em tiros de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo a todos que ocupavam o espaço público no centro da capital, enquanto afirmavam que estavam "devolvendo a cidade aos belo-horizontinos de bem".

"Mas, não, isso não pode! Esses 'restos de gente', esses 'dejetos', esses 'fedidos', esses 'bêbados', não podem ousar ocupar nossas ruas após o fim da nossa manifestação! Isso deveria ser proibido! Isso é... Vandalismo! Ah, esses 'analfabetos políticos', esses 'alienados', como ousam desorganizar nossa manifestação e fazê-la durar depois que nós, os verdadeiros manifestantes, já fomos pra casa dormir?! Isso aqui não é festa, é política, e política é coisa séria!" – tenho certeza que eu me depararia exatamente com essas falas se continuasse a ler os comentários postados no site, mas me senti tão enojada que preferi fechar a janela.

E o que me deixou enojada foi justamente o fato de que esses "puristas políticos", que segundo eles mesmos sabem o que é e o que não é uma "verdadeira manifestação", são os mesmos que ficam indignados quando ouvem dizer que está havendo uma chacina de moradores de rua nessa cidade, que ficam com pena dos "crackeiros" que estão sendo internados quase que à força na maioria das capitais brasileiras, que se dizem a favor da luta antimanicomial, que inflam o peito pra falar que defendem as ocupações, que se comovem com a pobreza e a miséria – mas que não aceitam que esses mesmos "mendigos", "drogados" e "loucos" usem a cidade como bem entenderem, seja antes, durante ou depois do "horário permitido" para isso. A manifestação não "perdeu o foco", como também disse alguém em mais um comentário desses que li: ela apenas não tem e não terá o único foco exigido por vocês. Nem o único formato aceito por vocês. Porque existem, sim, muitos e muitos outros "sem partido", e eles não são os playboys e patricinhas do Instagram, nem os tucanos e milicos disfarçados e prontos para o golpe, nem os desavisados que se enrolam na bandeira nacional, mas são simplesmente os "diferentes", os "excluídos", aqueles que todo mundo diz defender, mas com os quais não suportam conviver por causa do, sejamos claros, cheiro de mijo.

Vocês, "manifestantes oficiais", acusam a polícia, o Estado, o capital, a FIFA e a todos de "higienismo" – mas higienistas são vocês mesmos!

E, então, se nessa revolução eu não puder dividir a vida, em todos os seus momentos e em todas as suas instâncias, com aqueles que supostamente não "se encaixam" nela, essa não é a minha revolução...

Silvia Barbosa é mestre em Filosofia pela UFMG.


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