1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)

220814 padrão indigenaBrasil - Le Monde Diplomatique - [Antenor Vaz] Após 26 anos, é possível celebrar a eficácia dos princípios do Sistema de Proteção ao Índio Isolado: o respeito à decisão dos povos de se manterem isolados e a autodeterminação dos grupos de recente contato. No entanto, dificuldades apontam para um colapso do sistema.


Avistamentos ou contatos com indígenas “isolados” na América do Sul têm sido notícia recorrente na imprensa internacional. Brasil, Equador, Peru, Colômbia, Bolívia, Paraguai e Venezuela abrigam mais de duas centenas de referências sobre a presença de grupos indígenas isolados e/ou recém-contatados.

O Brasil voltou a ser notícia quando um grupo de sete indígenas isolados decidiu contatar os ashaninka da aldeia Simpatia (localizada na Terra Indígena Kampa/Isolados, no Alto Rio Envira, Acre, uma região de fronteira do Brasil com o Peru). Um grupo de isolados, na manhã do dia 11 de junho, tentou comunicação verbal, mas não foi compreendido pelos ashaninka. Por meio de gestos, solicitavam roupas e objetos industrializados – facões, panelas, entre outros. Faz cerca de três anos que esses “indígenas não contatados” são avistados próximo das aldeias dos ashaninka em busca de objetos industrializados e produtos das roças.

Esse fato desperta curiosidade acerca do então grupo isolado, mas também suscita outras questões: existem outros grupos indígenas isolados no território nacional? Quantos são? O que ocorre com esses grupos após o contato efetivado? Existem políticas públicas dirigidas a esses povos? Como o Estado brasileiro concebe essa questão e quais são os instrumentos de “proteção” para eles?

Povos indígenas isolados

Cerca de 90% dos povos indígenas isolados que restam no planeta vivem em sete países da bacia amazônica e chaco paraguaio, em florestas onde os ciclos ecossistêmicos e a biodiversidade se encontram preservados. Esses povos mantêm-se em isolamento como defesa de um contato que se mostrou destruidor, seja por conflitos com o “branco” ou com outros povos indígenas. A decisão de isolamento é manifestada por atos de ameaça dirigidos a invasores, mas principalmente pela fuga sistemática em direção a territórios cada vez mais distantes das frentes de expansão da “civilização” – territórios escassos e submetidos à avidez que cobiça cada centímetro de terra para a completa conversão da “natureza” em “recursos naturais”.

Para o Estado brasileiro, a definição de “índios isolados” ainda é a do Estatuto do Índio (1973): “quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional”. Grupos indígenas de recente contato, para a Funai, são “grupos que mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam singularidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e serviços”.

Com a Constituição de 1988, a Funai instituiu a política específica de proteção aos índios isolados, calcada na “premissa do não contato” enquanto “prerrogativa da autodeterminação” desses povos. E, em 2009, reconheceu a necessidade de conceber políticas diferenciadas para os grupos de recente contato. A despeito de iniciativas abnegadas de servidores, da sociedade civil organizada e de indivíduos isolados, essas políticas tendem a ser pouco efetivas diante do sucateamento e do desprestígio do órgão indigenista oficial perante as demais políticas de governo. Mas, afinal, qual é a política de Estado para os povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil de hoje? Para responder, é necessário retroceder na história.

A política indigenista da Colônia à República

A política indigenista na Colônia, Império e República Velha no Brasil levava a marca do tráfico indígena e negreiro e dos conflitos entre as oligarquias locais, secundadas pelas vagas de imigração europeia. Nesse contexto, “a questão indígena” transitou de umaquestão de mão de obrapara uma questão de terras.1 O debate girava entre exterminar os índios “bravos” ou civilizá-los. Para efeito prático/administrativo, até o século XIX os índios se subdividiam em “bravos” e “domésticos ou mansos”. Os “bravos”, não se submetendo aos aldeamentos e, consequentemente, às leis, eram perseguidos e exterminados. Essas duas concepções povoam o imaginário da população brasileira. A criação, em 1910, do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), renomeada em 1918 como Serviço de Proteção ao Índio (SPI), racionalizou a incorporação dos territórios e das populações indígenas à sociedade brasileira na Primeira República. O principal articulador desse projeto foi o Marechal Rondon, que aplicava um sistema militar de defesa da integridade territorial no país. Para o SPI, cabia à República resgatar as populações indígenas do extermínio. O símbolo da nova orientação foi a substituição da palavra “catequese” pelo termo “proteção”. De maneira geral, podemos afirmar que a política indigenista do Estado resumia-se à política de atração/pacificação como premissa de proteção, fomentando a passagem dos índios a trabalhadores agrícolas, levando ao extermínio físico e aniquilação cultural dessas sociedades, e servindo à integração dos territórios indígenas à sociedade brasileira.

Funai – “Contato” enquanto paradigma de “proteção”

Em 1967, em meio a denúncias de corrupção no SPI, foi instaurada uma Comissão de Inquérito no órgão. O Relatório Final,2 publicado em 1968, entre outras conclusões, determinou a demissão e a suspensão de duas dezenas de servidores. Nesse mesmo ano e num contexto de reorganização burocrática do Estado, os militares extinguiram o SPI e criaram a Funai. No que se refere aos índios isolados, mantiveram-se os princípios do contato/atração enquanto norteadores da proteção.

Proteção dos índios isolados no contexto da redemocratização

Em 1987, a Funai criou a Coordenadoria de Índios Arredios, atribuindo-lhe a competência de coordenar as ações relativas à atração e ao contato com grupos indígenas “arredios”. Naquele mesmo ano, coordenado pelo sertanista Sydney Possuelo, ocorreu o I Encontro de Sertanistas, que teve como finalidade a“análise da política de atração dos grupos indígenas arredios, visando definir uma nova postura da Funai”.Esse evento tornou-se um marco divisor, uma vez que formulou a mudança do paradigma do “contato” para o “não contato” enquanto premissa para a proteção dos isolados. E, ainda em 1987, a Funai introduziu a Coordenadoria de Índios Isolados(CII),3 estabeleceu diretrizes e criou o Sistema de Proteção ao Índio Isolado (SPII). Tendo como referência a Constituição de 1988 e o princípio da autodeterminação dos povos, a Funai definiu como uma de suas diretrizes garantir “aos índios e grupos isolados o direito de assim permanecerem, mantendo a integridade de seu território, intervindo apenas quando qualquer fator coloque em risco a sua sobrevivência e organização sociocultural”.A experiência inovadora desenvolvida pela Equipe de Localização dos Índios Isolados da Reserva Biológica do Guaporé, entre 1989 e 1994, resultou na primeira terra indígena demarcada exclusivamente para um grupo isolado, sem se estabelecer o contato.

O Sistema de Proteção para Índios Isolados e de Recente Contato

O SPII, concebido originalmente em 1987, é a estrutura administrativa destinada à proteção física, patrimonial e cultural dos grupos indígenas isolados. Em 2007, após duas décadas de experiência, formulou-se o Sistema de Proteção e Promoção de Direitos para Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC),subdividido em quatro subsistemas: 1) Gestão (Planejamento, Administrativo, Sistematização, Comunicação e Capacitação); 2) Proteção (Localização, Monitoramento e Vigilância); 3) Promoção de direitos (Processos Educativos e Intercâmbio, Educação Etnoambiental e Saúde); e 4) Contato. As ações deproteção, promoção de direitos e contato são desenvolvidas por equipes denominadas Frentes de Proteção Etnoambientais (FPEs). Nesse sistema, o contato pode ser estabelecido por decisão do grupo indígena isolado, por estranhos, ou pela Funai quando se caracteriza perigo eminente de extinção.

Em 2003, com a definição de um novo estatuto para a Funai, criou-se a Coordenação Geral de Povos Indígenas Recém-Contatados,mas o tema relacionado aos grupos de recente contato só voltou à discussão em 2007 e se institucionalizou com a reestruturação da Funai entre 2009 e 2012. A partir das práticas desenvolvidas com os grupos indígenas de recente contato (zo’é, korubo, akuntsu, kanoé, piripikura, awa guajá, entre outros), surgiu a necessidade de repensar as ações instituídas. Em 2010, deu-se início à concepção de programas nos quais se priorizaram a promoção sociocultural e a proteção física e territorial desses povos sujeitos a extrema vulnerabilidade, que resultariam na formulação da Política para Povos Indígenas de Recente Contato. Até hoje a Funai ainda não publicou portaria instituindo essa política pública.

Quantos e onde estão os índios isolados e de recente contato no Brasil?

Em 1988, o sertanista Wellington Figueiredo mapeou os grupos indígenas isolados no Brasil, relacionando 88 localizações com possível presença de grupos de isolados. A cada uma dessas localizações atribuiu-se a nomenclatura de “referência”.

As últimas atualizações realizadas pela Funai indicam 104 registros de índios isolados e dezesseis de grupos considerados de recente contato no Brasil (veja tabela).

Cenário atual: duas décadas do SPII

Após 26 anos de execução do Sistema de Proteção ao Índio Isolado é possível celebrar a eficácia de seus princípios: o respeito à decisão dos povos de se manterem isolados e a autodeterminação dos grupos de recente contato. No entanto, dificuldades de ordem conjuntural e estrutural apontam para um colapso do SPIIRC. O aumento da pressão da frente expansionista/desenvolvimentista pelos territórios ocupados por índios isolados e de recente contato, inclusive nas regiões de divisas internacionais, a falta de apoio político ou omissão dos poderes constituídos, o aumento das ações proselitistas missionárias, as atividades econômicas ilegais, os empreendimentos de grande impacto derivados de políticas e programas de governo, e os empreendimentos privados levarão os grupos isolados a procurar contato como única forma de sobrevivência. Dessa forma, a política estatal de “não contato” vai configurando-se como mera ficção retórica.

Desafios da política para índios isolados e de recente contato

Neste passeio pela atuação do Estado, o termo “proteção” assumiu conotações e práticas distintas, a depender do momento político/econômico: a “proteção” enquanto pacificação/contato, com a finalidade de incorporar os indígenas à civilização (Rondon); contato na perspectiva do protecionismo com “aculturação” lenta e controlada dos indígenas (irmãos Villas Bôas); contato na perspectiva do integracionismo ao mercado regional (Francisco Meirelles).4 Todas elas sob o guarda-chuva do contato enquanto prerrogativa da “proteção”. Já na Nova República, com a decisão tomada na Reunião dos Sertanistas (1987) no âmbito do processo constituinte, a política para grupos isolados mudou radicalmente ao adotar o “não contato” enquanto premissa de proteção e a consequente introdução do Sistema de Proteção ao Índio Isolado na perspectiva da proteção territorial (Sydney Possuelo). Atualmente, a Funai/Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) tenta dar continuidade à política de proteção na prerrogativa do não contato; as políticas de governo em curso, porém, não acenam com a mesma postura. Com essa compreensão, observa-se um paradoxo entre a finalidade de “proteção” para a qual a Funai fora criada e sua relação com o Poder Executivo, a quem é subordinada, quando este coloca em prática políticas que impactam os grupos isolados e de recente contato.

É necessário e urgente que a Funai, em cooperação com a sociedade civil, resgate sua atribuição constitucional de proteger e promover os direitos indígenas, incluindo os grupos isolados e de recente contato de modo que seus técnicos e dirigentes não se desviem dessa atribuição. O que se observa hoje é um volume grande de “tarefas administrativas” sendo exercidas por sertanistas/coordenadores de FPEs e seus auxiliares, impossibilitando-os de atuarem nos trabalhos de proteção in situ, que lhes competem.

Como já dito no início: as políticas indigenistas subordinam-se aos planos de defesa nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão da agropecuária/agronegócio e extração de minérios. No papel, as mais nobres intenções valem, mas, de fato, as disputas em torno da questão indígena, desde o tempo colonial, têm como cenário de fundo o ordenamento territorial e os recursos naturais. E, para a Funai, resta mitigar os efeitos de uma política da qual é refém. Esse contexto reproduz-se na maioria dos países sul-americanos com presença de índios isolados e de recente contato. No entanto, como na Colômbia, as políticas e metodologias de proteção têm tido avanços consideráveis. E a Funai, refém das políticas desenvolvimentistas, como a seleção brasileira de futebol, vai perdendo seu lugar de protagonista no campo da proteção para índios isolados e de recente contato.

Antenor Vaz

*Antenor Vaz é físico, educador e sertanista. Especialista em laboratórios didáticos de física, trabalhou nas áreas de educação popular, metodologias de trabalhos com jovens e gestão de projetos sociais. Sua maior experiência na área social deu-se com educação indígena e coordenação de trabalhos de localização de grupos indígenas isolados na Amazônia brasileira. Pôs em prática a Política para Índios Isolados na região amazônica, o que possibilitou a criação da primeira Terra Indígena (T.I. Massaco) exclusiva para índios sem contato reconhecida pelo governo brasileiro. É membro do Comitê Consultivo Internacional para Assuntos de Índios Isolados e em Contato Inicial. Foi coordenador de políticas para índios de recente contato na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai até março de 2013.

Ilustração: Daniel Kondo.

Notas:

1 Manoela Carneiro da Cunha, “Política indigenista no século XIX”. In: História dos índios no Brasil, Companhia da Terra/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, São Paulo, 1992.

2 Esse relatório tornou-se nacionalmente conhecido como “Relatório Figueiredo” e ficou desaparecido por mais de quarenta anos. Recentemente foi localizado nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. O relatório denuncia não só os casos de corrupção do SPI, mas também todo o processo de repressão e barbárie exercido pelo Estado contra os indígenas.

3 A CII ao longo dos anos alterou sua nomenclatura e seus objetivos. Em 2012, foi publicada a última alteração por meio do Decreto n. 7.778, de 27 de julho de 2012, no qual passa a se chamar Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC), subordinada à Diretoria de Proteção Territorial, e que traz em sua nova configuração o trabalho com os índios recém-contatados.

4 Carlos Augusto da Rocha Freire, Sagas sertanistas: práticas e representações do campo indigenista no século XX, tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2005.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.