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310713 venceremosVenezuela - Diário Liberdade - [Bruno Carvalho para o Diário Liberdade] Enquanto soam os acordes do grupo porto-riquenho La Sonora Ponceña, agarrado a uma escandinava, um venezuelano agita o corpo. 


A salsa arranca os pés do chão a dezenas de estrangeiros que tentam embalar a cintura ao mesmo ritmo que os autóctones. Aos mais tímidos, Gustavo Rodriguez dispara o trocadilho: “Quitate ese peo [problema], euro...peo!”. É a gargalhada geral. Entre os que dançam e os que esvaziam garrafas de rum Santa Teresa, repete-se o refrão: “Hay fuego en el 23, en el 23”.

Qualquer estrangeiro habituado a ler o que diz a imprensa sobre a criminalidade em Caracas ficaria de boca aberta. Não há nada mais pacífico do que este bairro pobre da capital venezuelana. Bem longe das discotecas onde a maioria dos turistas e uma parte dos caraquenhos procura divertir-se com segurança, este grupo de estrangeiros mistura-se pacificamente entre os moradores e não há qualquer tensão senão a de quem se estreia pela primeira vez nos caminhos da salsa.

São, principalmente, suecos, irlandeses, australianos, canadianos e fazem parte de organizações solidárias com o processo bolivariano. Vêm visitar o bairro 23 de Enero, bastião da revolução. Até à chegada de Hugo Chávez à presidência, em 1998, foi trincheira de combate a todos os governos. O bairro das guerrilhas tupamaras é hoje uma espécie de Belfast com centenas de murais dedicados a todos os que se levantam no mundo contra a opressão.

O bastião da revolução bolivariana

Aqui não há polícia mas consegue ser a zona mais segura de uma cidade com um índice brutal de criminalidade. São os próprios habitantes que vigiam as ruas e combatem a delinquência. Chamam-lhe vigilância revolucionária. Foi aqui que se refugiaram vários ministros de Hugo Chávez quando a direita, em 2002, tomou o poder durante dois dias através de um golpe de Estado legitimado por vários países europeus e pelos Estados Unidos.

Em 1989, a explosão popular que rebentou em todo o país contra o governo de Carlos Andrés Pérez, controlado pelo FMI, teve no bairro 23 de Enero um dos epicentros. A população resistiu de armas na mão à reacção militar. Caíram centenas de mortos e, ainda hoje, é impossível contar o número de assassinados ao longo de mais de cinco décadas de resistência. Não espanta, pois, que seja neste bairro que descansem os restos de Hugo Chávez.

No 23 de Enero, vivem hoje quase 100 mil pessoas. Mas para se perceber a dimensão da lenda em que se transformou este bairro, há que ir às origens. Entre o luxo das zonas ricas e o verde das montanhas, havia sido projectado pela ditadura de Marcos Pérez Jiménez uma urbanização a que se havia de dar como nome a data do golpe fascista. A urbanização 2 de Dezembro seria ocupada por camadas médias da população e os apartamentos estavam praticamente acabados quando cai a ditadura. A 23 de Janeiro de 1958, quando se derruba o regime, milhares de pobres invadem os apartamentos por estrear e resistem à violência policial.

No ano seguinte, na primeira visita ao exterior depois da revolução cubana, Fidel Castro é recebido em Caracas como herói e visita o 23 de Enero. A população decide, então, chamar Sierra Maestra a uma das zonas do bairro. Ali, não havia organização de esquerda que não tivesse implantação. Por ali passaram militantes do histórico Partido Comunista da Venezuela, guerrilheiros das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), da Bandeira Vermelha e, mais tarde, dos Tupamaros.

Che Guevara nos céus de Caracas

As explosões de foguetes são comuns em Caracas. É uma das expressões mais comuns de felicidade dos venezuelanos. Em noites eleitorais, há quem se possa atrever a adivinhar resultados olhando para as manchas de luz que rebentam no céu da capital da Venezuela. É só olhar para que zonas da cidade estão em festa. Quando as favelas explodem em alegria é porque a vitória cabe aos candidatos bolivarianos.

Para o bairro 23 de Enero, o dia 8 de Outubro é sinónimo de foguetório e toda a cidade sabe que se trata do aniversário da morte de Che Guevara. Gustavo Rodriguez, antigo guerrilheiro urbano e um dos representantes da Coordenadora Simón Bolívar, explica ao grupo de estrangeiros como tudo começou: “Na década de 80, várias organizações do bairro 23 de Enero combinaram assinalar o aniversário da morte de Che Guevara. À meia-noite, a partir das açoteias dos prédios, íamos desafiar uma vez mais o regime com o lançamento de foguetes sobre o céu de Caracas”.

Mas nem tudo correu bem. Um grupo de jovens tinha ficado de lançar o primeiro. Tentavam compensar o atraso com o passo acelerado sobre as escadarias de um dos principais edíficios do sector Monte Piedad. Quando soa o sinal das zero horas numa emissora de rádio, ainda não tinham passado o décimo primeiro piso. Faltavam mais três andares e um dos camaradas decide acender um foguete. A pressa e o nervosismo não ajudam. Em vez de subir, o foguete rasga o ar a toda a velocidade e entra por uma janela do prédio vizinho.

A explosão ilumina todo o apartamento donde sai disparada uma mulher em roupa interior. Quis o acaso que o primeiro foguete lançado em memória do guerrilheiro fuzilado na Bolívia rebentasse sem pedir autorização na casa da amante de um polícia. Enquanto explodiam os céus de Caracas, a mulher gritava semi-nua.

Apesar do começo anedótico, a acção teve um grande impacto. Durante semanas, haviam recolhido dinheiro clandestinamente e centenas de subversivos enchiam os telhados das principais favelas de Caracas e da Universidade Central. Só no dia seguinte é que a maioria da população soube que se tratava de uma homenagem e, desde então, antes e durante a revolução bolivariana, é assim que se vive o 8 de Outubro, o dia do guerrilheiro heróico.

310713 caracasOs anos de pólvora dos Tupamaros

Durante décadas, o bairro 23 de Enero foi alvo da repressão policial. Depois da derrota do ditador Marcos Pérez Jimenez, os três partidos do arco do poder assinaram um acordo que ficou conhecido como Pacto de Punto Fijo. A Acção Democrática (AD), a União Republicana Democrática (URD) e o Comité de Organização Política Eleitoral Independente (Copei) juntaram-se “para assegurar a estabilidade no país” mas na prática para assegurar a alternância e a partilha do poder nas instituições. O Partido Comunista da Venezuela (PCV) foi excluído e mais tarde ilegalizado.

Depois da experiência bem sucedida dos guerrilheiros conduzidos por Fidel Castro, as experiências armadas espalham-se como pólvora por toda a América Latina. Na Venezuela, o PCV e outras organizações decidem criar as Forças Armadas de Libertação Nacional e nas montanhas surgem núcleos guerrilheiros. Oficialmente, as FALN dissolvem-se em 1966 mas até à vitória eleitoral de Hugo Chávez houve diversos grupos armados a operar na Venezuela.

O 23 de Enero ficou conhecido como território tupamaro. Um pouco por culpa de Gustavo Rodriguez. O antigo guerrilheiro emprestou um manual da organização armada uruguaia a um jovem amigo e pediu-lhe que o escondesse bem. Um dia, a polícia invade uma série de apartamentos vizinhos e, amedrontado, o jovem lança o livro pela janela. As autoridades descobrem o documento e no dia seguinte as manchetes dos jornais arrancam-nos do anonimato: “Tupamaros no 23 de Enero”.

Gustavo Rodriguez conta que desde criança via do apartamento os tiros que o exército e a polícia disparavam contra as janelas dos edifícios. “Pode dizer-se que desde pequenos estivemos expostos ao fogo dos inimigos do povo. Lembro-me perfeitamente da minha mãe que nos escondia na casa-de-banho, lugar onde não podiam chegar as balas”, explica. Depois de terminar a escola primária, o antigo guerrilheiro entrou na escola técnica donde saíam carpinteiros, metalúrgicos, electricistas e muitos outros profissionais. Em luta pela criação de uma associação de estudantes, foram barbaramente reprimidos pelo governo de Rómulo Betancourt. Num dos dias houve 72 feridos e um morto. Gustavo tinha 13 anos.

“Mais tarde, na universidade, começámos a ler revolucionários como Lénine, Mao e Che Guevara. Começámos a sentir-nos identificados com a criação dessa sociedade onde o ser humano possa ser respeitado e valorizado”. Estavam criadas as bases teóricas. No 23 de Enero começaram a denominar-se J23, Jovens do 23 de Enero. Enquanto a polícia submetia o bairro a um controlo parecido com aquele que faz o exército israelita ao povo palestiniano, os mais novos começavam a estrear-se na resistência. Aos tanques de guerra, às metralhadoras anti-aéreas, às revistas e aos interrogatórios violentos, respondiam com pedras e cocktails molotov.

Nessa época estava na moda a Guerra de Guerrilhas, de Che Guevara, e o Manual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella. É então que se dá a entrada dos membros da J23 em várias organizações guerrilheiras. Ao 23 de Enero já lhe chamavam “Vietname”. Gustavo Rodriguez, sob o pseudónimo de David, entrou para a Bandeira Vermelha e na segunda metade dos anos 70 acaba por entrar na clandestinidade. Mais tarde, acabará por fazer parte da frente guerrilheira “Antonio José de Sucre” na zona oriental do país.

Hoje, Gustavo Rodriguez é um dos que levam adiante o projecto da rádio Al son del 23, uma emissora comunitária que opera no bairro. Imitando o histórico programa de Hugo Chávez, Aló Presidente, chamou ao seu programa Aló 23. Na Coordenadora Simón Bolívar, juntaram-se muitos antigos combatentes que continuam a desenvolver a actividade política no 23 de Enero, agora por meios pacíficos. A não ser que regressem aqueles que deixaram um passado de miséria no país.

Aquele sítio, onde se levanta agora a emissora de rádio e o edifício da Coordenadora Simón Bolívar, era o quartel da polícia. Conta quem por ali passou que era um centro de tortura. Foi alvo de dezenas de investidas dos guerrilheiros urbanos. Gustavo Rodriguez ainda se lembra da noite em que teve de escapar da resposta policial a golpe de niples. Niples? “É um explosivo de fabricação caseira. Utilizávamos tubos metálicos e enchiamo-los de pólvora e pregos, tudo bem aconchegado. Tapas bem as pontas e metes uma mecha. Nós tinhamos um método nosso em que metiamos uma tampa e quando a tirávamos acendia a mecha. Ia empapada de ácido e clorato de potássio. Ao lançá-lo, em poucos segundos, explodia”.

Trincheira anti-imperialista

Apesar de ser destino de visita para muitos simpatizantes da realidade política venezuelana, o bairro continua a receber os ódios da oligarquia e as queixas de embaixadas de vários países. Os partidos da oposição e vários governos acusam o 23 de Enero de servir de refúgio para colombianos, bascos e irlandeses. Em 2008, seis meses após a morte de Manuel Marulanda, comandante histórico das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), a Coordinadora Simón Bolívar, com a presença de membros do PCV e de outras organizações venezuelanas, promoveram uma homenagem que arrancou um protesto do governo do então presidente colombiano Álvaro Uribe.

Nesse dia, foi inaugurada a Praça Manuel Marulanda e o busto do guerrilheiro. Financiada pela comunidade, a obra foi acompanhada pelo porta-voz da Coordenadora Simón Bolívar (CSB), Juan Contreras. Quem esculpiu o rosto de Manuel Marulanda fê-lo nas entranhas da selva colombiana e a estátua foi transportada por guerrilheiros das FARC. Entre as centenas de pessoas que aplaudiram e deram vivas à organização comunista estavam dezenas de representantes políticos de estruturas comunistas e progressistas de vários países.

Enquanto se destapava o rosto do lendário combatente das FARC, soava o hino da guerrilha e o hino da Venezuela. Jovens queimavam a bandeira dos Estados Unidos perante os holofotes e os disparos da imprensa que assistia estupefacta ao carinho por alguém que sempre trataram de demonizar. A noite acabou em ritmo de festa ao som do cancioneiro fariano.

Para Juan Contreras, as gentes do 23 de Enero sentem-se identificadas “com a luta que trava o povo colombiano, admiram a figura de Manuel Marulanda”. E acrescenta: “como organização popular, continuaremos a apostar pela paz e que esse povo irmão conquiste definitivamente uma nova Colômbia onde não se persigam os camponeses, onde não haja massacres impunes e o narcotráfico amparado pelo Estado”.

Sentado na praça Manuel Marulanda, onde agora brincam crianças, o membro da CSB é taxativo e clarifica que não podem considerar terroristas aqueles que lutam pela liberdade dos seus povos. “Em todo o caso, são os povos que escolhem as suas formas de luta e a luta armada é uma combinação de formas de luta que nós não podemos censurar. Só temos de respeitar”.

Juan Contreras e Gustavo Rodriguez são apenas alguns dos que arriscaram a vida para que o povo pudesse arrancar a Venezuela da miséria. Estão orgulhosos do seu bairro. Foi a primeira zona do país em que o analfabetismo foi erradicado. Hoje, velhos e novos tratam de construir um modelo de justiça social e seguir o exemplo de Hugo Chávez. Questionados sobre a ausência do histórico presidente, são peremptórios: “Todos somos Chávez”.

Bruno Carvalho é jornalista português. Colaborador do Diário Liberdade, onde conta com espaço próprio na secção de Opinião: "Contra-ataque"


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