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cancino12Chile - Opera Mundi - [Victor Farinelli] Passada para a iniciativa privada durante a ditadura, sistema no Chile produz distorções: em média, clientes recebem apenas 30% do valor do salário.


Com o passar dos anos, a rotina de Sergio Cancino pouco tem mudado. Aos 72 anos, ele ainda precisa acordar cedo quatro dias por semana, pegar metrô e ir até um supermercado no centro de Santiago, onde trabalha como caixa. No dia livre, quase sempre vai visitar seu advogado. Desde o ano passado, ele move uma ação tentando recuperar o dinheiro investido numa das empresas administradoras de fundo de pensão.

Sergio Cancino foi um dos primeiros trabalhadores a se aposentar pelo novo sistema previdenciário chileno, privatizado em 1982. Apesar de ter começado a trabalhar quando ainda existia o antigo sistema estatal solidário, Sergio decidiu criar seu fundo individual em 1983, estimulado pela promessa de que poderia chegar a uma aposentadoria maior que o seu salário médio.

Em 2011, ele decidiu se aposentar. A empresa que administrava o seu fundo lhe deu uma surpresa: sua aposentadoria era de 77 mil pesos (pouco menos de 400 reais). Após dois anos de batalhas judiciais, o valor foi recalculado, e passou a 83 mil. Então, Sergio e seu advogado tentaram pedir para que ele pudesse retirar de uma só vez todo o valor acumulado em seu fundo ou em parcelas negociáveis, o que lhe foi negado, com o argumento de que, segundo a lei, somente a empresa administradora tem a prerrogativa de definir a política de disposição dos fundos aos contribuintes.

“Usaram tanto a palavra liberdade quando me convenceram a mudar de sistema, e eu acreditei nisso, e agora eu não tenho a liberdade de decidir como quero receber o meu dinheiro”, reclama Cancino a Opera Mundi.

A explicação dada pela AFP (administradora de fundos de pensão) que gere o fundo de Cancino é de que ele era um trabalhador informal, que atuou muito tempo como vendedor autônomo para diferentes empresas, e por isso sua contribuição mensal variava muito de valor e houve períodos entre um emprego e outro em que ele deixou de contribuir. “Quando me ofereceram o serviço, eu falei que era vendedor e que temia que se não contribuísse constantemente poderia não conseguir grande rentabilidade, e eles me disseram que não, que me ajudariam a fazê-la render mais, e agora vêm com essa desculpa”, lamenta Cancino.

Atualmente, o ex-vendedor recebe o aporte complementar lançado em 2013 pelo governo de Sebastián Piñera em 2013 — mesmo ano em que decidiu voltar a trabalhar, por achar que mesmo a ajuda governamental era insuficiente para cobrir os gastos. Cancino, porém, não é o caso mais extremo.

Em algumas regiões rurais e no extremo sul do país existem casos de pessoas que recebem valores inacreditáveis, sendo o caso mais impactante o de um operário da cidade de Punta Arenas, a capital mais austral do Chile, próxima ao Estreito de Magalhães, que recebe 228 pesos mensais de aposentadoria (equivalente a pouco mais de um real).

Expectativas de vida

Entre os clientes deste sistema, talvez a maior distorção esteja em pessoas que contribuíram regularmente a vida toda e, ainda assim, terminaram com uma aposentadoria muito abaixo do esperado. Principalmente, entre ex-funcionários públicos.

Patricia Pino é um desses casos. Ela terminou sua carreira no Instituto de Segurança do Trabalho em setembro do ano passado, com um salário de um milhão de pesos (cerca de R$ 5 mil). O valor da aposentadoria Atualmente, Patricia recebe uma pensão de pouco mais de 300 mil pesos (R$ 1,5 mil).

O caso de Patricia é representativo, porque está de acordo com a média de distorção do sistema. Segundo o Banco Central do Chile, o salário médio dos usuários do sistema é de 575 mil pesos (pouco menos de R$ 3 mil), porém o valor médio que recebem atualmente as pessoas já aposentadas pelo sistema é de 174 mil (cerca de R$ 870), sendo que mais de 60% dos casos são de pessoas que recebem menos de 120 mil pesos (dois terços de um salário mínimo, e aproximadamente 600 reais).

Mesmo as pessoas que tinham salários altos reclamam dos resultados do atual sistema, como o faz Patricia Pino. “Eu tinha contrato, estabilidade, retirei os 10% do meu salário para a AFP todos os meses, não faltou nenhum, e agora não explicam, nada, apenas dizem que eu vou recuperar todo o dinheiro que eu investi”.

Um detalhe que ajuda a entender o caso de Patricia, e que se repete país afora, é o fato de que o informe mensal que a empresa administradora entrega a ela junto com o pagamento da aposentadoria projeta uma expectativa de vida de 120 anos. Atualmente com 62 anos, ela precisará esperar mais 48 anos receber todo o seu dinheiro. “A pessoa que mais viveu na família foi uma tia que morreu há dois anos, aos 91 anos, e eles querem que eu chegue até os 120 para receber toda a minha aposentadoria”, ironiza ela a Opera Mundi.

Nesse caso, a empresa administradora se defendeu dizendo que em caso de morte, os demais recursos são herdáveis aos filhos, e que a expectativa de vida dos clientes é reavaliada periodicamente, e esse valor pode ser aumentado futuramente.

Adesão compulsória

Outro caso comum entre os clientes de AFP são os de pessoas que alegam não ter mudado de sistema conscientemente. Durante o período de transição do sistema, nos anos 1980, os trabalhadores incorporados ao antigo sistema estatal tinham a opção de continuar com ele o mudar para o novo sistema privado. Porém, são muitos os casos de trabalhadores que reclamam terem sido colocadas numa AFP sem consentimento.

Um deles é o motorista de ônibus Marco Antonio Orellana, que descobriu somente em 2007 que tinha suas contribuições administradas por uma AFP. Naquele ano, ele precisou mudar seu registro profissional devido à reformulação no sistema de transporte público de Santiago, e ao fazê-lo descobriu que suas contribuições não eram destinadas ao sistema estatal, como supunha.

Sua esposa investigou o seu caso e descobriu que seu contrato com a AFP foi estabelecido em 1984, através de uma assinatura falsa. “Essa empresa se tornou dona das contribuições dona do meu marido de forma ilegal, e durante 22 anos eles não deram sequer uma satisfação, ele teve que descobrir por uma casualidade”, reclama María Carmen Espinoza, esposa de Orellana, que, como motorista ganhava 550 mil pesos (cerca de R$ 2,7 mil e, atualmente, aos 69 anos, recebe aposentadoria de 210 mil pesos (pouco mais de R$ 1 mil).

Imigrantes

Um caso especial entre os usuários do sistema privado é o dos imigrantes, já que a maioria deles se vê na obrigação de aderir às AFP,s o que é um dos requisitos para poder usar o sistema público de saúde.

A saúde pública no Chile não é gratuita, e, para ter acesso ao serviço é preciso ter um plano de saúde ou ser contribuinte do Fonasa (Fundo Nacional de Saúde, que funciona na prática como um plano de saúde estatal). Logo, um imigrante que queira ter acesso ao Fonasa, mais barato do que um plano de saúde privado, precisa estar afiliado a uma AFP e ter pelo menos seis meses de contribuições pagas no ano anterior — e ainda pagar o percentual cobrado pelo Fonasa, o que ainda assim sai mais barato do que ter um plano de saúde privado.

Segundo a professora María Luz Navarrete, líder do movimento Aqui La Gente, que luta contra o sistema previdenciário privado, os casos de imigrantes estão entre os mais comoventes que ela já conheceu. “Alguns imigrantes, principalmente haitianos, não entendem porque precisam pagar isso para ter acesso à saúde, porque muitas delas pretendem voltar ao seu país um dia, ou migrar a outro, nunca vão cobrar esse dinheiro depois, e a empresa certamente vai embolsar todo esse dinheiro”, comenta.

Porém, existem grandes comunidades de imigrantes que lutam para recuperar o seu dinheiro investido nas AFPs, e a que mais foi adiante com essa luta foi a comunidade peruana. É o que assegura o comerciante peruano Raúl Paiva, que vive no Chile desde 1992, e afirma que há pelo menos dez anos a comunidade de imigrantes do seu país luta pelo direito de poder levar de volta ao Peru o dinheiro investido, no caso de decidirem regressar.

“Em 2013, nós conseguimos uma pequena vitória, e fomos recebidos pela própria Michelle Bachelet, que na época era candidata, e ela se comprometeu com a comunidade peruana a defender essa proposta. Tenho certeza que muitos peruanos votaram nela por causa disso  — no Chile, todo imigrante com mais de cinco anos de residência tem direito a votar.


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