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030714 venVenezuela - Resistir - [Juan C. Villegas P. [1], CIFO - 29/04/14] As dificuldades actuais da economia venezuelana (inflação anualizada que ultrapassa os 50%, desabastecimento de produtos do cabaz básico, esgotamento das reservas internacionais e sucessivas desvalorizações), que têm uma notável incidência negativa sobre o nível de vida da classe operária, provocaram novamente um debate sobre o "modelo económico venezuelano", tentando estabelecer diferenciações entre o modelo da chamada "IV República" e o que se tenta desenvolver no processo bolivariano.


A oposição de direita acusa o governo nacional de haver tentado implantar um suposto modelo "socialista" e "estatizante" que conduziu o país à crise actual, ao passo que o vice-presidente da área económica, Rafael Ramírez, qualifica-o como um êxito em vista dos avanços em matéria de distribuição de rendimento e redução da pobreza.

Quer atribuindo a culpa ao "modelo socialista" ou à "guerra económica", ambas as visões representam apenas explicações ideológicas da situação actual, ocultando com isso que se trata do resultado da forma específica do processo de acumulação de capital na Venezuela. Em primeiro lugar, há que interrogar se o actual "modelo económico" é diferente do que caracterizou a economia venezuelana a partir da primeira metade do século XX. Para isso é necessário lançar uma vista de olhos ao desenvolvimento da economia nacional nas últimas décadas e, mais especificamente, ao comportamento do sector manufactureiro.

Aqui não há nada de novo: Acumulação baseada na captação da renda petrolífera

Falar sobre um novo "modelo económico socialista" não é apenas desconhecer a realidade, é também uma operação propagandista cujo resultado é a absoluta confusão de importantes camadas da classe trabalhadora, com consequências políticas que tornam mais difícil qualquer avanço rumo à superação do capitalismo. A economia venezuelana a partir da primeira metade do século passado e até o dia de hoje foi e é uma economia capitalista fundamentada na captação junto ao mercado internacional da renda da terra mineira. O estado venezuelano, como único proprietário do recurso petrolífero, utiliza a referida renda, através de diferentes mecanismos de alocação e redistribução, para a sustentação do resto dos sectores da economia [2] . Por isso, quando a renda é considerável tudo anda bem (na aparência) e, pelo contrário, quando a renda se torna insuficiente começam a manifestar-se os problemas.

Uma olhadela às exportações petrolíferas, desde 1970 até à actualidade, gera um panorama suficientemente amplo em relação ao peso do rendimento petrolífero no total das exportações e de como essa situação não mudou em mais de 40 anos.

Gráfico 1: Exportações petrolíferas 1970-2012 (percentagem do total)

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Não só os rendimentos petrolíferos representam mais de 90% das exportações do país, tal como na década de 1970, como a isso acrescenta-se o facto de que as referidas exportações na actualidade representam uma maior percentagem de petróleo bruto. Efectivamente, até fins da década de 1980, as exportações de produtos refinados de petróleo ultrapassavam os 30% das exportações totais. Durante os anos noventa começa a manifestar-se um declínio que atinge o seu ponto mínimo em 2003 em resultado da paralisação golpista daquele ano. Actualmente, os produtos refinados de petróleo só atingem os 14% do total das exportações. Este facto reveste-se de importância especial em virtude de a refinação ser uma actividade manufactureira, o que implica agregação de valor.

A queda observada na participação do rendimento petrolífero durante as décadas de 80 e 90 do século passada não se deve a uma maior diversificação da economia e sim a uma queda nos preços internacionais dos hidrocarbonetos, situação que é revertida em princípios do presente século, gerando com isso um novo auge rentista.

A ilusão de uma burguesia nacional

A abundante quantidade de renda captada em relação à dimensão da economia permitiu a importação de bens de capital com a intenção de industrializar o país mediante a política de substituição de importações. Uma taxa de câmbio sobrevalorizada, financiamento a baixo custo proveniente do estado, uma política comercial proteccionista e a concessão de subsídios foram as formas concretas pelas quais o estado venezuelano transferiu uma importante fracção da renda petrolífera ao empresariado nacional e ao capital estrangeiro localizado na Venezuela. Da ideologia da superação da dependência desprende-se a política de subsidiar a burguesia local com a promessa de que a mesma desenvolveria economicamente o país. O resultado, pelo contrário, é um sector privado nacional de produtividade muito baixa que portanto é incapaz de inserir-se com êxito na economia mundial. Tal ilusão susteve-se enquanto a renda petrolífera era abundante, mas mal iniciada a década de 1980, um queda nos preços do petróleo e a manifestação da crise da dívida, ficariam evidentes as limitações do processo de acumulação de capital na Venezuela.

Uma revisão das taxas de crescimento manufactureiro, desde 1950 até o ano passado, revela quando realmente começa a "destruição do aparelho produtivo nacional", do qual tanto se queixa a burguesia nativa.

Gráfico 2: Taxa de crescimento do PIB, sector manufactureiro, 1950-2013

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As elevadas taxas de crescimento observadas durante as décadas de 50 e 60 devem-se a uma mudança estrutural na economia venezuelana (de agrária para petrolífera). O desenvolvimento de actividades conexas à exploração de petróleo (infraestrutura, refinação, transporte, etc) e a crescente urbanização impulsionaram o crescimento do sector industrial, facto que se consolida a partir da adopção da política de industrialização por substituição de importações. Segue-se a década de 70, caracterizada por um aumento nos preços internacionais dos hidrocarbonetos e por um crescente endividamento externo, o qual permitiu o desenvolvimento de um importante componente da indústria básica e, em menor medida, o financiamento à pequena e média indústria. A festa rentista termina com uma queda nos preços internacionais dos hidrocarbonetos e, a partir de 1983, a crise assume forma específica com a desvalorização da moeda e a crise da dívida.

Assim chega-se ao ano de 1989, com a adopção de políticas de liberalização da economia. Depois de décadas de proteccionismo e dada a escassa escala de acumulação da economia venezuelana, o resultado não podia ser senão a inviabilidade da inserção do sector industrial venezuelano na economia mundial, facto que se manifesta com o estancamento do PIB do referido sector durante toda a década de 1990. Com excepção do que aconteceu durante a paralisação golpista de 2002-2003, a volatilidade observada a partir de 2000 é resultado o auge rentista do início do século, com picos nos anos de maior rendimento rentista e quedas precisamente nos períodos em que diminui o preço internacional dos hidrocarbonetos (2008-2009).

É importante destacar que se trata de uma crise inerente ao processo de acumulação, que começa a entrar em colapso no princípio dos anos oitenta e que se agrava à medida que passam os anos. Não se trata de uma ou outra política errada ou situação conjuntural, como se verifica pelo facto de que em matéria de política cambial desde 1983 até à data foi tentado quase tudo: desvalorização com controle de câmbios, taxas de câmbio duais, controle de câmbios com controle de divisas, livre flutuação, desvalorizações sucessivas (crawling peg) e flutuação entre bandos. O resultado é o mesmo: perda de poder aquisitivo da moeda, redução do salário real, fuga de capitais, altos níveis de inflação e uma progressiva desindustrialização com a resultante importante expulsão de mão-de-obra.

A "grande viragem" rumo à desindustrialização

Tal como indica L. Vera (2009) [3] , outro indício da inflexão desindustrializadora que sofreu a economia venezuelana é constituída pela participação do sector manufactureiro no PIB total do país. Tal situação é ilustrada pelo seguinte gráfico.

Gráfico 3: Participação (%) do Sector Manufactureiro no PIB, 1950-2013

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Apesar de uma diminuição progressiva das taxas de crescimento do PIB sectorial, este continua seu ritmo ascendente se for comparado com o total do PIB até fins da década de 1980, período no qual alcança seu ponto máximo, para a seguir entrar num processo de declínio que data de mais de 25 anos. O processo de industrialização impulsionado pela disponibilidade de renda reverte-se na medida em que esta se torna cada vez mais insuficiente para o funcionamento da economia. Trunca-se desta forma a possibilidade de o capital industrial valorizar-se e acumular-se no âmbito nacional. A abertura económica a partir de 1989 encontra um sector industrial venezuelano pequeno, fraccionado, ineficiente e incapaz de competir no mercado mundial.

Este processo continua com o início do século, no qual o auge rentista serviu para retomar a política de financiamento ao pequeno capital, mas desta vez com um revestimento ideológico cujo objectivo seria a suposta superação do modo de produção capitalista através de fórmulas como o cooperativismo, o "desenvolvimento endógeno", a economia "popular" e um longo e pitoresco etcétera. [4]

Gráfico 4: Emprego sectorial, como percentagem do total empregado, 1975-2013 [5]

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"Quando o que está a morrer não termina de morrer..."

O resultado de tudo isto é próprio da dinâmica da acumulação capitalista, na qual o capital mais ineficiente tende a desaparecer devido à competição e com isso expulsa um importante da classe operária, facto que se torna evidente nos números do emprego sectorial. No gráfico nº 3 é claramente visível como o emprego no sector manufactureiro não deixou de diminuir especialmente a partir de finais dos anos oitenta, até representar no ano passado pouco mais de 10% do total da população ocupada. No sector do comércio, pelo contrário, o crescimento é mais que evidente, a ponto de se constituir no sector de actividade económica com maior participação no emprego.

Existem duas formas pelas quais este processo pode ser explicado: em primeiro lugar, a competição capitalista obriga a introduzir melhorias tecnológicas que reduzem a existência de postos de trabalho no sector manufactureiro; em segundo lugar, a mesma competição desloca os capitais mais pequenos e ineficientes obrigando-os a encerrar e despedir trabalhadores [6] . A crença de que a pequena e média indústria pode constituir um sector manufactureiro capaz de atender as necessidades de consumo nacional choca-se irremediavelmente com o processo de acumulação capitalista em que só aqueles capitais que consigam uma escala suficiente de concentração conseguem sobreviver.

O pequeno capital que antes era destinado à manufactura agora é destinado a actividades onde efectivamente possa valorizar-se, isto é, actividades de comércio e serviços. Desta forma desaparecem empresas de manufacturas quer por encerramento quer por fusão com outras maiores e onde antes havia uma importante actividade no ramo têxtil agora florescem gigantescos centros comerciais [7] , a fábrica de calçados desaparece e dá lugar a uma importadora do mesmo ramos, a indústria metalúrgica é substituída pela importação de bugigangas, o pequeno industrial químico converte-se em proprietário de uma destilaria e o pavilhão industrial encerra-se para inaugurar um hotel-casino. Finalmente, toda actividade produtiva é fulminada diante da expressão máxima do rentismo parasitário: a fraude cambial.

A depauperação da classe operária

Este processo leva a que importantes camadas da população operária sejam deslocadas para sectores onde sua subjectividade produtiva é degradada, empregando-se em actividades de baixa produtividade. Além do sector informal da economia, que representa cerca de 40% da população ocupada segundo o Instituto Nacional de Estadística (INE), a Comissão Económica para a América Latina (CEPAL) indica que mais de 50% da população ocupada na Venezuela está em empregos de baixa produtividade (comércio a retalho, serviços, restaurantes, hotéis, etc). Este processo teve o seu auge durante a década de 1990 e actualmente permanece estável como indica o gráfico nº 5.

Gráfico 5: Empregos de baixa produtividade em % do total, 1990-2012

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Sectores cada vez mais numerosos da classe operária convertem-se em População Operária Sobrante (POS), o que significa que é população que sobra para o capital [8] . Neste caso, o capital localizado na Venezuela não necessita desta camada da classe operária, por isso expulsa-a obrigando-a na maior parte dos casos a inserir-se na economia informal, nas actividades por conta própria e alguma forma específicas de emprego público. Tal como ocorre com o resto da economia venezuelana, as referidas actividades sustentam-se graças à redistribuição da renda.

A queda da actividade manufactureira e o depauperamento da classe operária são resultados da especificidade do processo de acumulação de capital na Venezuela, processo que já vem mostrando sintomas claros de esgotamento desde há várias décadas, com períodos nos quais uma alta nos preços internacionais dos hidrocarbonetos atenua a tendência geral. O crescimento do consumo interno combinado com um rendimento petrolífero cada vez mais insuficiente impulsiona novamente o surgimento da crise e, com ela, os programas de ajuste que aceleram o processo de empobrecimento generalizado dos trabalhadores.

É precisamente nesta etapa crítica que se faz mais necessária a organização e mobilização da população trabalhadora, em primeiro lugar para travar qualquer tentativa da direita filo-fascista de aproveitar o agravamento da situação para aceder ao poder cavalgando o descontentamento das massas. Em segundo lugar, requer-se a elaboração e discussão ampla por parte do movimento operário organizado de um programa político próprio, cujo objectivo imediato seja acabar com a velha receita de entregar a renda petrolífera aos capitalistas, enquanto um ajuste brutal é descarregado sobre os trabalhadores.

A classe operária, ao contrário, não só deve impulsionar uma política integral cujo norte seja a utilização da renda petrolífera para a concentração de capital em áreas estratégicas da economia (indústria, produção alimentar, construção habitacional, banca e comércio exterior) como deve colocar-se a tomada do poder político e, com isso, administrar a renda em função dos interesses da classe operária. Renda que foi exaurida pela burguesia com a cumplicidade de todos os governos.

Notas:

[1] Este artigo faz parte de um esforço muito mais ambicioso dos integrantes do Centro de Investigación y Formación Obrera (CIFO) e da Asociación Latinoamericana de Economía Marxista (ALEM) de compreender o processo de acumulação de capital na Venezuela. Por isso alguns aspectos exigem um nível de profundidade que transcendem o presente escrito.

[2] Diversos autores estudaram esta temática, dentre os quais destacam-se Baptista, Asdrúbal. (2007). Teoría Económica del Capitalismo Rentístico, (2da edición). Caracas, Ediciones BCV.

[3] Vera, L. (2009). Cambio estructural, desindustrialización y pérdidas de productividad: evidencia para Venezuela . Cuadernos del CENDES, 26(71). Este autor realiza, sob o enfoque da mudança estrutural, um estudo interessante sobre o processo de desindustrialização na Venezuela, no qual se destaca o cálculo da produtividade laboral tanto sectorial como para o conjunto da economia.

[4] Exemplo disso constitui as " "Unidades de Producción Socialista" da já quebrada Corporación Venezolana Agraria (CVA), nas quais minúsculas unidades de produção de farinha pré cozida de milho não conseguem produzir nem sequer 5% do que produz uma só unidade de empresas polar .

[5] Consideram-se unicamente os sectores de manufactura e comércio que incluem restaurantes e hotéis.

[6] Não só Marx em O Capital como Engels em "A situação da classe operária na Inglaterra" (1845) explicam de maneira minuciosa este processo, em vigor hoje em dia.

[7] O exemplo mais patente disso é constituído pelo grupo MANTEX (Manufacturas Textiles SA) que antes era uma empresa têxtil importante na cidade de Valencia e agora dedica-se à construção de centros comerciais (Metrópolis Shopping). Para conhecer parte da sua história ver www.mantexmetropolis.com/mantex/quienes_somos.html

[8] Sobre este aspecto foi de muita utilidade a leitura do artigo de Marina Kabat (2009). La sobrepoblación relativa. El aspecto menos conocido de la concepción marxista de la clase obrera . Anuario CEICS, 3, 113-134.


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