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ruas de quito no equadorEquador - Carta Maior - [Eric Nepomuceno] O Equador é um país de contrastes e contradições. Não poderia ser de outra maneira: o Equador é um país latino-americano. Contradições não faltam.
 


Quito 1. Começou na terça-feira, dia 3 de dezembro. Cresceu na tarde da quarta-feira, dia 4. Ficou bastante mais intenso ao meio-dia da quinta, dia 5. E explodiu na sexta, dia 6: Quito está em festa.

Pelas ruas, pelas esquinas, há pequenas bandas, parecidas às dos circos da minha infância, tocando pasos dobles. Nos restaurantes, principalmente os dos hotéis, há conjuntos cantando a todo vapor músicas espanholas, com prioridade para el canto hondo, a música flamenca. Em muitos há festivais de paella. Nas rádios, e subitamente, e sem razão alguma, o castelhano suavemente cantado dos andinos desaparece, e surge a pronúncia áspera dos espanhóis da Espanha. Os locutores imitam seus colegas d’além mar, d’além história.

Estranha cidade, a capital do Equador. Numa espécie de vale a 2.800 metros de altitude, é bela. O centro histórico, velho de quase meio milênio, é dos mais instigantes da América Latina. As pessoas são cordiais, afetuosas e solícitas.

Há bons escritores no Equador. Há uma arte popular ancestral, e de qualidade. Não tão rica como a da Guatemala, do Peru ou do México, mas de alto nível.

A comida do país, dividida entre o litoral e a montanha, é de uma riqueza e um refinamento que reflete exatamente a sua cultura. Quito foi a primeira cidade – ao lado de Cracóvia – a ser declarada patrimônio da Humanidade pela UNESCO, em 1978. E com razão.

Por esses dias, com auge na sexta-feira 6 de dezembro, Quito, cujo prefeito é de esquerda, aliado leal do presidente Rafael Correa, faz festa.

Por esses dias, Quito celebra sua derrota, sua humilhação. Esquece os seus verdadeiros heróis fundadores, e louva seus algozes. Estranho costume, em um país que tenta resgatar suas raízes e abraçar seu futuro.

Amarga herança, essa que nos ensina a louvar quem nos humilha e humilhar, pela via do silêncio e do esquecimento, quem merece ser resgatado para nos resgatar.

2. Quito foi fundada, formalmente, no dia 6 de dezembro de 1534. Na verdade, existia há muitos séculos. Era uma importante cidade do império inca. Havia aqui, desde uns mil anos antes da chegada dos ibéricos, um povo heróico. Quando Quito foi dominada, ou seja, fundada de novo, seu símbolo maior era o cacique inca Ruminhahui. Foi queimado pelos espanhóis na praça central, a Plaza Mayor, daquela Quito recém arrasada. O conquistador, o carrasco, se chamava Sebastián de Benalcázar.

Naquele dia, ele passeou, em seu garboso cavalo, pela praça, pelas ruas. Ria às gargalhadas. Havia conquistado o bastião principal.

Que alguém me explique: há como celebrar a sangria que criou uma cidade? Há como celebrar o violador da dignidade de um povo que a partir daquele dia passou a viver séculos de submissão? Há como celebrar a humilhação, na capital de um país que nos últimos tempos elegeu um presidente que não faz mais, com seus erros e acertos, que tentar resgatar o futuro?

Outras cidades equatorianas têm suas festas. Guayaquil, por exemplo, celebra o 9 de outubro, dia da derrota dos espanhóis. Cuenca celebra o 3 de novembro, quando se livrou do jugo ibérico. Quito celebra sua fundação, feita sobre uma terra arrasada e saqueada. Por quê?

Por decisão de outro tirano, bem mais contemporâneo.

Foi a ditadura do contra-almirante Ramón Castro Jijón, fruto de uma conspiração armada (está documentado: não é opinião, é fato) pela CIA em aliança com as elites locais, que resolveu celebrar o dia 6 de dezembro.

E ninguém, nenhum prefeito, nenhum governador, nenhum presidente conseguiu, até hoje, acabar com essa festa indigna. Quito continua celebrando não propriamente seu nascimento, mas sua derrota.


3. O Equador é um país de contrastes e contradições. Não poderia ser de outra maneira: o Equador é um país latino-americano.

Sua capital celebra, com festanças, o dia em que foi violada, há sei lá quantos séculos. O país tem outros motivos para celebrar.

Por exemplo: os últimos dados indicam que o desemprego no Equador é de uns 4%. Entre 2001 e 2010, a pobreza diminuiu 90%. No período anterior, ou seja, entre 1990 e 2001, havia diminuído 6%.

Entre 2006 e 2011, o poder aquisitivo real dos trabalhadores equatorianos subiu 4% acima da inflação a cada ano. A eletrificação rural, entre 2001 e 2010, alcançou 87% das moradias.

O Equador e o Chile são os dois únicos países sul-americanos com os quais o Brasil não tem fronteiras terrestres.

Hoje, o Equador, ao contrário do Chile, tem um governo, o do presidente Rafael Correa, afinado, desde muitos pontos de vista, com o processo político vivido pelo Brasil a partir de 2003.

Há altos – e polpudos – interesses brasileiros no Equador. Gigantes brasileiros da construção ganham pirâmides de dinheiro no Equador. Pelas ruas das cidades equatorianas circulam automóveis brasileiros. Enfim, o Brasil ganha um bom dinheiro no Equador.

E o Brasil desconhece o Equador. Ignora um país belo e de gente digna, um país de contradições, cuja capital celebra a própria humilhação enquanto os equatorianos resgatam seu destino e constroem o futuro que há séculos vem sendo negado.  


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